Lá vem Maria

RUPTURA

ago 23, 2013 por

Os olhos…aqueles olhos.

Os olhos que ela buscava. Olhos de apoio, olhos de confirmação, olhos afetuosos, olhos de aliança, olhos que abraçariam seu corpo hipotérmico e acenderiam a fé.
Os olhos, aqueles olhos foram olhos conflitivos, depois frios e depois…Depois foram olhos nos quais ela se viu indigna, pérfida, incapaz.

Olhos que a retratavam denegrida. Olhos que a atravessavam como a fria lamina da faca ao lado.
Quis se refazer, se redesenhar, se repaginar naqueles olhos. Mas era nada. Era vazio, era coisa alguma e se era alguma coisa era coisa menor, era menos, um monstrengo, uma deformação de mulher.

Ainda se debatia, tentava puxar um fio do que era, e quanto mais tentava, mais se enredava naquela coisa, e quanto mais se enredava mais tentava e mais queria que aqueles olhos aquecessem, aquiescessem, acariciassem e mais nada era, coisa nenhuma, coisa disforme.
Mais tentava, mais sentia a prisão,  e palavra alguma tinha efeito contrario, senão mais e mais tinha efeito de corte de faca de fio afiado. Corte da faca ao lado.

Era nada e nada não vive e se vive por que vive? Para que vive o tormento?
Palavra nenhuma, argumento algum, fala alguma desfazia o frio dos olhos que retaliavam.

Gritava todos os gritos e grito algum alterava nada e nos olhos o retrato indigno e definitivo a prendiam e destroçavam o que poderia ser. Destroçavam com finos cortes, como seriam finos e frios os cortes da faca ao lado.
A faca ao lado no pulso… a faca ao lado …
Nenhum grito, nenhuma palavra, nenhum argumento…Os olhos a retratavam e prendiam e denegriam e ela sabia que era preciso romper, sair, escapulir.
A faca ao lado… a faca no pulso…
A alma gritando tormento: o fio da faca, não!

A luta, a sombra vazia, a faca no pulso. A faca não!

Precipitou-se porta à fora, apanhou o pano branco que balançava no varal, cobriu a cabeça e fugiu.

Palavras, nunca mais falou.

Gritos, nunca mais gritou.

Olhos acusadores, nunca mais olhou.

 

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O outro lado do cinza

mar 30, 2013 por

Mulheres esqueléticas, enrugadas e cinza, com cabelos cinza, pele cinza, olhos cinza, vestimentas cinza, segurando vassouras e ancinhos cinza, que varriam cinzas no espaço concavo e cinza.

Fumaça cinza subindo do chão cinza revolvido pelas mulheres cinza.

Nas cinzas,  moldavam o que haveria de vir.

 

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FRACTAL

abr 18, 2012 por

Na imensidão da areia clara e fina ia titubeando. Sentia que os pés enterravam na areia, mas mantinha os olhos no céu. Logo a areia solta desapareceria e os pés poderiam deslizar na massa molhada e pesada. E a água salgada chegaria em ondas e cobriria os rastros e arrastaria grãos e jogaria estrelas para fora e puxaria moluscos para dentro de si. Os olhos de agora seguiam o pássaro enquanto a memória puxava pela imagem capturada pelos olhos de outra era.

Não era o mesmo pássaro. Com certeza, não era. Pássaros não atravessam séculos. Almas sim. Almas atravessam. Mas atravessariam como indissolúveis holos? Ou talvez, imitando o Big Bang, explodissem, espalhando partículas coloridas e disformes, que ao acaso, se reuniriam em outros holos, repletos de lembranças desencontradas? Seria assim com os pássaros? E aquele à frente, que insistia em ir e vir, como se a tentasse conduzir a um local designado, seria remanescência de outros tempos? Traria nalgumas partículas, memórias inconclusas e disformes, como lhe ocorria?

A areia molhada não deixava que os pés deslizassem. A água formava fina lâmina e espelhava o sol, mas não retirava a aspereza que a natureza lhe impunha. Quantas vezes teria afundado os pés naquele pedaço de praia? Dezenas. Talvez centenas. Mas os pés não haviam registrado a aspereza. Os olhos sim, gravavam as idas e vindas de um pássaro. Seria o mesmo, ou haveria acordo entre os semelhantes e todos exercitavam-se na mesma rota? Qual o número de partículas mnemônicas seriam necessárias para construir um pássaro?

A faixa molhada sumia e reaparecia, fazendo a vontade do mar. E o pássaro atingia o cume do morro e voltava e a contornava e tocava o cume e de novo manobrava para retornar. Os olhos atuais cansaram de seguir o bailado das asas. Os pés cansaram da areia banhada pela água salgada. O corpo, fatigado, ganhou o chão fresco, deleitando-se com a brisa.

O corpo do pássaro não cansava.  Ia e vinha e rodeava e fazia manobras e recrutava novo pássaro na memória de outra era. O pássaro de seu afeto, que pousava em seu braço, apanhava alimento de suas mãos, soltava sons esganiçados e ganhava o céu, sem nunca perde-se na imensidão azul ou branca.

À memória do som estrídulo, respondeu  fixando os olhos na pedra aguda que ponteava o morro, onde o pássaro de agora abria e fechava as asas. A ave repetiu o movimento incontáveis vezes e subiu ao céu, deixando no lugar a figura apenas delineada e transparente de um velho. Os olhos de agora nada viam, mas os da memória cobriram o delineamento de traços, dando forma a poderosa figura.

Perdeu-se do mundo ao redor. Migrou para a pedra de outra era e através dos olhos da imagem recriada, viu o mar arrastando o corpo para dentro de si. Do alto de seu penhasco, a poderosa imagem, a via morrer, inerte.

Novo canto estridente e os olhos pousaram no fractal que o sol dispunha no pico do morro. Almas em fragmentos e que ainda assim,  atravessam o tempo e o espaço como indissolúveis holons.

 

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MARIA, VESTIDA DE PLENITUDE

mar 22, 2012 por

 

Entrou na avenida vestindo a fantasia que não sabia de onde vinha. Não titubeou. Progrediu rodopiando e sambando e cantando, como se da vida restasse apenas um pedaço de noite. Brilhou à luz dos refletores  e reluziu purpurinas até que a bateria cessasse. Caiu em negro vazio ao fim do longo percurso.

Antes de invadir avenida, trancou a porta, deixou a casa e andou à deriva. Andaria ainda, se o bloco dos redentos não a tivesse apanhado.

Antes  de sair sem rumo, abandonou  a cama e o quarto. Permaneceria no seu aconchego, se lá se sentisse aconchegada.

Antes de deixar  o leito não respondeu ao toque do homem, porque antes havia dito de sua solidão e vazio e não queria premio de consolação.

Antes de falar de si, rolou na cama, tomada de desejo.  Latentes, viviam beijos ardentes, caricias desmedidas e livres, risos francos e despudorados.

Antes, haviam outras noites, outros dias, outras esperas.

Depois, acordou num barracão desconhecido, de paredes imprecisas, cobertas de máscaras, disfarces e vestimentas disformes. Despiu-se das fantasias e do havia antes e antes do antes.  Plena de si, saiu,  a reinventar-se.

 

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ENTRE DEUS E DEUS

mar 16, 2012 por

Malena cresceu. Mas antes que chegasse ao tamanho da mulher de agora, deixou o pequeno sítio e rumou com a família para a pequena cidade. E de lá, antes que o corpo ganhasse as formas do corpo da mulher de agora, rumou com a família para a cidade de médio porte. Não seguiu com os seus para lugar algum. Com o corpo do tamanho e formatos de agora, rumou sozinha para uma cidade estonteante, complexa e contraditória. Deixou para trás o mundo de Malena e foi erguendo, dia à dia, derrota à derrota, vitória à vitória o mundo de Maria Helena.

Da janela do décimo quinto andar a mulher Maria Helena acompanha o sol poente. Antes atirou a bolsa na poltrona, jogou os sapatos num canto da sala, espichou o corpo numa grande almofada e exercitou a capacidade de silenciar pensamentos. Adormeceu, acordou com sede, apanhou água e parou frente a janela para o mundo insensato da metrópole. Ainda mantinha o silêncio premeditado, mas uma nuvens intrometida abordou o sol e se instalou como se fosse um colorido chapelão mexicano.

No redondo do sol a mulher pintou o rosto da mãe, Benedita Maria, sombreado pelo chapelão de uso diário.

Benedita era dona da terra que a família cultivava. Era dona do gado que ordenhava ainda com o sol nascente; dos porcos que alimentava logo depois da ordenha; das galinhas que dava de comer logo depois de alimentar os porcos e da horta que costumava limpar e regar antes do anoitecer. Era mãe dos moleques a quem dava ordens enquanto dispunha alimentos e auxiliava na partida para escola matinal em descoloridas bicicletas. E enquanto os meninos estudavam Benedita corria com a arrumação da casa e com a comida que distribuía sobre a chapa do fogão à lenha. Os olhos avançavam do fogão ao quintal e do quintal à lavoura, mas os ouvidos não desgrudavam do rádio que lhe trazia o mundo.

Depois de alimentar filhos e marido e de dar brilho as panelas e bacias, Benedita enfiava uma calça velha sob o vestido, camisa de manga longa sobre o mesmo, um chapelão sobre a cabeça miúda, apanhava a enxada e seguia para as leiras do cafezal. Os homens começavam a capinha da cabeceira do sitio e Benedita, das proximidades da casa, de onde podia seguir os passos de Malena. Mas antes da capina vespertina, dia após dia, Benedita parava na casa ao lado e repetia o chamamento: embora Tiana.

Em dia de muito sol Tiana não ia a lugar algum e respondia sem sair da sombra: vô não mulher. Mas Benedita insistia: se não ajudar seu marido vai faltar comida pros seus meninos, mulher! E Tiana replicava: se faltar Deus provém.

Benedita sabia que não adiantava insistir, mas nunca deixava de contrapor: Deus já deu braços, pernas e saúde, o o resto é com a gente. E seguia com a labuta, ressentida pela dificuldade com as letras. Se soubesse ler, provaria para Tiana que Deus havia dado às pessoas tudo que precisavam para dar conta da vida. Bastava pedir a graça das boas escolhas. Era o que sempre dizia ao marido e aos filhos, quando reclamava do mato que tomava a roça dos meeiros.

O chapelão de nuvem cobriu o sol e apagou o rosto de Benedita. Maria Helena voltou ao almofadão, mas não exercitou o silêncio. Repassou a infância vivida entre plantas e bichos, o inicio da adolescência entre ruas poeirentas da cidadela que atendia aos agricultores, a juventude confusa, atropelada pelas novidades que o mundo injetava na cidade média. Repassou atropelos, desvios, tempos que não deixaram saudades e outros, impregnados de boas lembranças. Deu atenção às crenças que atravessaram a vida e  entendeu que se nunca tomou para si o Deus provedor propagado por Tiana. Nalgum ponto de sua trajetória desacreditou daquele Deus separado do mundo e ordenador das vidas dos seres pensantes, que a mãe cultivava sem grande alarde. Nalguns trechos andou desnorteada, sem referências ou crenças, colecionando dúvidas e inseguranças. Mas, nalguma parte do caminho começou a cultivar um Deus que chamou Consciência Cósmica e com ele, impregnou seu  mundo.

 

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DESSEMELHANTES

mar 4, 2012 por

30045

Meu lado direito diverge e o esquerdo colide com o primeiro.

Minha cabeça diverge e o coração choca-se com os pensamentos.

Meu coração diverge e a cabeça contesta  a alma.

Um lado do cérebro diverge,  o outro opõe-se o mundo.”

Ajeitou o corpo na rede, mas não parou com a lenga-lenga. Não haveria de parar. Dezenas e dezenas de anos escamoteando  conflitos davam direito a repetição. Da admissão redentora não escapuliria, ainda  que a paz do sono sumisse pelas frestas dos olhos.

Meus olhos divergem e as imagens contradizem as crenças.”

No universo paralelo o dedo da mulher escorregou numa tecla e o computador disparou um som intermitente e chato. No mundo paralelo a tela, os chamarizes coloridos seduziam a navegante: os amigos do face, os intermináveis e repetitivos confrontos políticos, as campanhas sociais. Coisas de ontem com maquiagem nova.  A mulher do mundo ao lado não se despiria  nem se aninhasse ao  lado. A mulher do outro planeta vivia a guerra e ambos adversavam.

Retomou à lenga-lenga, adormeceu vazio de amor, acordou agastado.

Meu espírito viaja  em confronto e o corpo  choca-se com ele. “

Rolou o corpo, jogou as penas para o outro lado, deu com o céu de fim de tarde repleto de nuvens cinza.

No plano ao lado a mulher ainda clicava velozmente. No outro, o pássaro pousado na haste da bromélia, bebericava.

“O conflito vive em mulheres e homens. A sabedoria, nos pássaros e bromélias.”

Dobrou as pernas, se aninhou no côncavo da rede, desistiu dos enfrentamentos e  adormeceu em paz.

 

 

 

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