Lá vem Maria

O outro lado do cinza

mar 30, 2013 por

Mulheres esqueléticas, enrugadas e cinza, com cabelos cinza, pele cinza, olhos cinza, vestimentas cinza, segurando vassouras e ancinhos cinza, que varriam cinzas no espaço concavo e cinza.

Fumaça cinza subindo do chão cinza revolvido pelas mulheres cinza.

Nas cinzas,  moldavam o que haveria de vir.

 

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TRILOGIA DA FÊNIX: O VESTIDO AZUL

nov 8, 2011 por

Desejava ter cadernos organizados, títulos sublinhados em vermelho, letra bonita, conteúdos seqüenciados, cada qual em seu lugar. Desejava e tentava. Mas sem mais nem menos, um após outro, os cadernos ficavam magros, cheios de desenhos inacabados e de anotações pessoais. A língua portuguesa migrava para o meio da aritmética ou vice-versa e o tal dos estudos sociais viravam um ninho de amafagafos.

Não seria diferente com seu guarda roupa, mas lá quase não podia por a mão. Os vestidos, cuidadosamente arrumados só podiam ser retirados sob supervisão. A cômoda, por sua vez…
A cômoda, aquele móvel onde ficavam as roupas do dia-a-dia era o melhor exemplo de caos que a família conhecia. A mãe ralhava, a irmã mais velha reclamava e ela tentava e tentava, mas sem mais nem menos as roupas saiam do lugar e se entrelaçavam voluntariosamente.

Dos vestidos cuidadosamente arrumados e protegidos, só gostava de dois. Um branco, de corte simples, sem manga ou gola, sem laços ou fitas, sem saias nem sobre saias. Sua beleza estava na trama de pequenas e delicadas rendas, que não deixavam espaço para adereços. O outro, em tecido leve de cor azul tinha um detalhe singular: as mangas três quartos em formato de sino. Gostava da cor, do corte simples e das mangas, que em vez de fechar, abriam.

Fosse dona de suas escolhas, nas ocasiões especiais só lançaria mão de uma dessas peças. Mas não era. E para encerrar as questões, mais que para agradar à mãe, vez ou outra aceitava uma das tantas vestimentas cheias de firulas e salamaleques.

Foi assim, tentando ter novo um caderno para retomar o propósito da organização, que juntou os trocados que sobravam aqui e acolá e recorreu à papelaria. Escolheu a cor da capa, viu os preços, contou o dinheiro. Estava pronta para encerrar a negociação, mas ao lado do caixa, bem ao lado mesmo, havia uma nova vitrine. Pequena, mas cheia de presilhas, brincos, pulseiras e colares. Peças brilhantes e coloridas, diferentes das jóias que as irmãs vez ou outra ostentavam e infinitamente mais em conta.
Parou, contou e recontou o dinheiro, ameaçou pagar o caderno e ir embora, mas lá no meio das bugigangas, bem no meio mesmo, descobriu uma presilha azul. Tão azul quanto o seu mais belo vestido. Não bastasse, tinha numa das pontas uma pedra branca, tão branca quanto seu outro vestido. E do lado, bem do ladinho da presilha repousava uma pulseira linda, ligeiramente mais escura.

Pensou e repensou. Voltou a contar o dinheiro, considerou o tempo que havia gasto para juntar a quantia, vislumbrou a possibilidade de abrir mão de sorvetes e chicletes, lembrou que o proprietário era cliente mensalista de seu pai e fez seu primeiro crediário.

Fez, tropeçou na capacidade de execução do plano de pagamento e esqueceu a dívida. Mas o homem, antigo proprietário das peças e cliente de seu pai não esqueceu. Tanto lembrou que numa tarde qualquer o pai, que pouco lhe dirigia a palavra a interpelou. O dono da papelaria, que nem precisava daquela quantia ínfima, na hora de pagar as contas do mês havia apresentado a nota da presilha e da pulseira.

Já tinha retesado o corpo esperando imensa represália, mas o homem nada fez alem de alertá-la. Não faltava dinheiro à família. Portanto podia ter seus enfeites sem que para tanto o envergonhasse com falta de pagamento. Concluir recomendando que lhe pedisse e traria os adornos desejados.
Ficou envergonhada, talvez ainda mais que o pai, frente ao cobrador. Mas ao saber que o pai nada falaria à mãe, comemorou, feliz, a única aliança familiar. Logo esqueceu a questão e na primeira oportunidade deixou que a faceirice a contagiasse enquanto exibia vestido e adornos.

Não ganhou nenhum novo enfeite do pai, que simplesmente sumiu sem deixar rastro.

E, tentando minimizar confrontos, cresceu entre organzas e sedas, sapatos de verniz, brincos de pérolas e armários, que nunca seguiam as normas maternas. Cresceu ressentindo-se da ausência do aliado, que denominou traidor. Cresceu e finalmente descobriu que o homem cortês e de poucas palavras, fora levado à força e desapareceu nos meandros da ditadura. De posse da verdade, rompeu com os tecidos de nome e renome, conseguiu uma vaga num curso artes e para comemorar, tingiu o vestido de linho branco com o mais intenso dos azuis que encontrou num armazém sem eira nem beira.

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