Lá vem Maria

DESSEMELHANTES

mar 4, 2012 por

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Meu lado direito diverge e o esquerdo colide com o primeiro.

Minha cabeça diverge e o coração choca-se com os pensamentos.

Meu coração diverge e a cabeça contesta  a alma.

Um lado do cérebro diverge,  o outro opõe-se o mundo.”

Ajeitou o corpo na rede, mas não parou com a lenga-lenga. Não haveria de parar. Dezenas e dezenas de anos escamoteando  conflitos davam direito a repetição. Da admissão redentora não escapuliria, ainda  que a paz do sono sumisse pelas frestas dos olhos.

Meus olhos divergem e as imagens contradizem as crenças.”

No universo paralelo o dedo da mulher escorregou numa tecla e o computador disparou um som intermitente e chato. No mundo paralelo a tela, os chamarizes coloridos seduziam a navegante: os amigos do face, os intermináveis e repetitivos confrontos políticos, as campanhas sociais. Coisas de ontem com maquiagem nova.  A mulher do mundo ao lado não se despiria  nem se aninhasse ao  lado. A mulher do outro planeta vivia a guerra e ambos adversavam.

Retomou à lenga-lenga, adormeceu vazio de amor, acordou agastado.

Meu espírito viaja  em confronto e o corpo  choca-se com ele. “

Rolou o corpo, jogou as penas para o outro lado, deu com o céu de fim de tarde repleto de nuvens cinza.

No plano ao lado a mulher ainda clicava velozmente. No outro, o pássaro pousado na haste da bromélia, bebericava.

“O conflito vive em mulheres e homens. A sabedoria, nos pássaros e bromélias.”

Dobrou as pernas, se aninhou no côncavo da rede, desistiu dos enfrentamentos e  adormeceu em paz.

 

 

 

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TRILOGIA DA FÊNIX: A MENINA RUIM

nov 23, 2011 por

Ainda não tinha dez anos quando revidou à bofetada do irmão de dezoito atirando copos e talheres em sua direção. A mãe desconsiderou a bofetada e para corrigir o mau gênio, impôs um castigo. Para não piorar as coisas a menina ficou calada, ouvindo os resmungos da mulher: pra quem será que essa criatura puxou pra ser tão ruim?
A mãe não falava de má índole, crueldade ou perversidade, que conduta do gênero a filha não tinha. Ao contrário. Era gentil com os bichos, cultivava um pequeno jardim que ela própria havia criado, nunca batia em crianças menores, evitava brigas com colegas de brincadeira. Mas revidava a tudo que lhe desagradasse, fossem palavras ou atos. E nestes termos, levava adultos de todas as idades ao constrangimento.
Para não piorar as coisas a menina ficou calada. Não contou a ninguém, que mesmo tomada de raiva, evitava acertar o irmão com os copos, os garfos e as facas que atirava. Se soubessem de seu segredo, a vida poderia ficar ainda pior. Melhor o castigo injusto que o risco eminente.

Ainda não tinha quinze anos quando, de ferro elétrico fumegante em punho, enfrentou o homem que ameaçava bater numa menina indefesa. Fez com que o ferro esbarrasse na mão do agressor para que soubesse de sua disposição. O homem vociferou, mas saiu de cena enquanto a mãe, que assistia, reafirmava sua crença na natureza ruim da adolescente. Estava exausta e não quis argumentar. Guardou para si o alivio que experimentou ao ver o homem ceder. Seria doloroso machucar uma pessoa, ainda que para evitar que machucasse uma criança.

Não tinha vinte anos quando se opôs aos familiares que ameaçavam expulsar um dos membros. Não conseguiu convencê-los da validade de seus argumentos, mas os imobilizou e obteve a suspensão da sentença. A mãe louvou sua ruindade e festejou a inteligência expressa na argumentação. Ela, no entanto, não mostrou conivência. Indignação e raiva a haviam induzido, mas também a exauriam.

Beirava os trinta anos quando surpreendeu funcionárias sob sua supervisão debatendo a seu respeito. Uma, recém chegada, falava das cismas impostas pelos comentários ouvidos. Outra, mais antiga testemunhava a respeito do apoio recebido. Não evitou a situação, fez piada com os títulos recebidos á revelia, deixou o grupo à vontade e partiu incomodada.

Completaria trinta e cinco anos quando, numa brincadeira de amigos secretos uma colega de trabalho, favorecendo a adivinhação, definiu seu amigo ou sua amiga como a pessoa mais respeitada ou temida da organização. Ela gritou o nome do presidente enquanto ouvia de todos os outros, seu próprio nome. Brindou à sua capacidade de ordenar atitudes apenas com sua presença, riu com os demais e partiu cansada de ser “uma pessoa ruim”. Semanas depois estava decidida a aparar os espinhos e dar vazão ternura, que acreditava enclausurada.

Tinha quarenta anos completos e passava por grande dificuldade financeira e de saúde. Era comum que a buscassem para apoio, para pedir favores, para apropriação de suas idéias e conhecimentos. De resto, estava sozinha. Aos pouco as capacidades de sonhar e criar embotaram, o corpo deformou e as dores o tomaram.
Urgia que descansasse, necessitava de tempo e lugar para regenera-se, mas principalmente sentia o desespero de ver-se desalojada de si.

Enfim, comemoraria quarenta e cinco anos revitalizada pelo encontro com um homem de gênio ruim. Para dar conta da convivência resgatou argumentos, poliu a indignação, apropriou-se das situações que instigavam sua raiva e entendeu que sua ternura, para florescer, precisava de suas farpas afiadas. Bastava que soubesse quando baixar a guarda.

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OPS! DEFLOCULEI OS NÓS.

jul 23, 2011 por

Acordei estranha. Bem estranha.
Ao sair da cama portava uma leveza de quem perdeu alguns quilos enquanto dormia. Olhei a imagem do espelho e os quilos estavam no mesmo lugar, mas a leveza persistiu. E além dela, outros sintomas fenômenos: maleabilidade, mobilidade, alegria, disposição.
Não dava pra deixar rolar e então, enquanto organizava o material necessário ao dia de trabalho fui puxando os fios de alguns nós. Lembrei as rasteiras que levei e elas já não eram rasteiras, mas fatos consumados e agora descartados, que naqueles momentos serviram para alguma coisa que não lembro. Pensei nas pessoas que me magoaram, mas a mágoa já não estava lá. E as lembranças apareceram em companhia de um discernimento constrangedor. Uma espécie de entendimento multifacetário que meu repertório não permite explicar. E as dores? Essas, creio, entraram em férias ou partiram sem qualquer aviso. A decepção, onde foi parar? Os feixes de frustração?
ilustração: Erly RicciSem mais nem menos, acordei com a  respiração fácil,  bem estar corporal e fluidez das boas emoções: coisas esquisitas acontecendo num dia comum de trabalho. O jeito foi acomodar-me ao imprevisto e começar a produção dos objetos de cerâmica. Primeiro, a água no batedor de barbotina. Depois, com a máquina em atividade, a argila seca adicionada aos poucos, junto com um tanto de caulim e outro de filito. Ao creme tão espesso quanto vitamina de abacate adicionei, para finalizar, gotas de defloculador. Num instante, o creme virou líquido fino, que rodava ao impulso da hélice, exibindo mechas acetinadas.

OPS! Entendi a estranheza toda!

Cinco meses de Florais de Bach e defloculei os nós.

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AS BACTÉRIAS SABEM DAS COISAS

jun 28, 2011 por

Estava com a mão no barro, modelando sem pressa e quando faço isso a alma flui, as coisas que mais quero afloram, as ideias e imagens saltam com limpidez de água de fonte em leito de pedras. Mas às vezes a perplexidade ganha primeiro plano.

Já não tenho acesso ao lugar de minha preferência. Desde a catástrofe de março o mirante está interditado. O bairro da Laranjeira, no caminho e entre morros, praticamente deixou de existir.

Antonina, um lugarejo ao pé da serra, a beira de uma baía onde o mar sequer faz ondas e a água da chuva deveria ter curso livre ao vasto mangue, foi inundada e sofreu com deslisamentos .

Desastre causado por chuvas torrenciais. Mas há agravantes: assoreamento, pequena parte natural, muito causado pela retirada de vegetação das margens dos rios; ocupação inadequada e construção de usina (embora a Copel negue com veemência); recortes em morros íngremes para construção irregular; construções que impediram o curso da água dos morros ao mar, como uma quadra de esportes ao lado de uma escola, que este ano já vi ser inundada pelo menos três vezes . E,  o fator recorrente:  rede de escoamento inadequada.

Enquanto vivíamos nossa pequena tragédia, no mesmo dia, ou na mesma noite, do outro lado do mundo, uma catástrofe de dimensão incomensurável, pois o  efeito do que aconteceu no Japão não tem prazo de validade.

Podemos olhar de outro ângulo: O MUNDO SE TRANSFORMA, A VIDA TEM SUAS GUINADAS E COSTUMA ASSUMIR CURSOS IMPREVISÍVEIS E INCONTROLÁVEIS.

Aí está, a teoria transformada em fatos. Pouco tempo atrás as placas tectônicas se moveram na costa do Chile, provocando desastres e deslocando o eixo da terra.  Coisa mínima, disseram os especialistas.  Entre os dois fatos,  uma cadeia de fenômenos, em diferentes pontos do globo. Esse, da costa do Japão, levou a outro deslocamento do eixo da terra, também mínimo e segundo especialistas, irrelevante. E os especialistas também disseram que as nuvens radioativas japonesas não chegariam nem mesmo aos países próximos ao Japão. Eles parecem ignorar que a TERRA é uma unidade, uma teia, uma rede indissolúvel de realimentação (positiva e negativa) , repleta de  conexões  entre as PARTES e entre elas e o TODO, e que um e outro detém informações a respeito de tudo (só para lembrar o que mostra Gregory Batson, em Natureza e Espírito).

Embora os aparelhinhos dos especialistas neguem terminantemente, já somos (poderia dizer fomos, mas o verbo não refletiria o pensamento) atingidos.

Mas as mudanças do mundo ultrapassam o plano biofísico e o químico.

Países do Oriente Médio, de princípios e religiões conservadores, enfrentam ditadores e pregam renovação. Os grandes capitalistas, mesmo na eminência de uma catástrofe nuclear, que pode ter efeitos maiores que maremotos e erupções vulcânicas, relutam em limitar a energia nuclear.

A FRAGILIDADE DA VIDA DOS SERES QUE SE PENSAM ACIMA DOS ANIMAIS (concebidos como  irracionais) ESTÁ EM EVIDÊNCIA.

As bactérias, que na eminência de risco alteram e esparramam seus genes, e o fazem em rede para preservar espécies, cumprem percurso oposto ao do homem, que antes jogou bombas atômicas em cidades japonesas, fez e faz testes de armas de todos os tipos em áreas desertas ou não tão desertas, porque a vida também existe ali. E sem pestanejar, provocou e provoca explosões no fundo do mar, sem dar valor às consequências.

Janela catastrófica?

Apenas um momento nostálgico que antecede à pergunta:

O QUE REALMENTE TEM VALOR?

Estar próximo aos meus filhos e de outras pessoas queridas, vê-los desenrolar o fio de suas vidas, cultivar afetos, dispor o conhecimento que acumulei aos trancos e barrancos a eles e àqueles que possam fazer bom uso. Escrever, cuidar de plantas e modelar algumas peças nos intervalos

Se nos derem um tempinho a mais, viajar de vez em quando, pra olhar outros jeitos de viver.

 

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