Lá vem Maria

FRACTAL

abr 18, 2012 por

Na imensidão da areia clara e fina ia titubeando. Sentia que os pés enterravam na areia, mas mantinha os olhos no céu. Logo a areia solta desapareceria e os pés poderiam deslizar na massa molhada e pesada. E a água salgada chegaria em ondas e cobriria os rastros e arrastaria grãos e jogaria estrelas para fora e puxaria moluscos para dentro de si. Os olhos de agora seguiam o pássaro enquanto a memória puxava pela imagem capturada pelos olhos de outra era.

Não era o mesmo pássaro. Com certeza, não era. Pássaros não atravessam séculos. Almas sim. Almas atravessam. Mas atravessariam como indissolúveis holos? Ou talvez, imitando o Big Bang, explodissem, espalhando partículas coloridas e disformes, que ao acaso, se reuniriam em outros holos, repletos de lembranças desencontradas? Seria assim com os pássaros? E aquele à frente, que insistia em ir e vir, como se a tentasse conduzir a um local designado, seria remanescência de outros tempos? Traria nalgumas partículas, memórias inconclusas e disformes, como lhe ocorria?

A areia molhada não deixava que os pés deslizassem. A água formava fina lâmina e espelhava o sol, mas não retirava a aspereza que a natureza lhe impunha. Quantas vezes teria afundado os pés naquele pedaço de praia? Dezenas. Talvez centenas. Mas os pés não haviam registrado a aspereza. Os olhos sim, gravavam as idas e vindas de um pássaro. Seria o mesmo, ou haveria acordo entre os semelhantes e todos exercitavam-se na mesma rota? Qual o número de partículas mnemônicas seriam necessárias para construir um pássaro?

A faixa molhada sumia e reaparecia, fazendo a vontade do mar. E o pássaro atingia o cume do morro e voltava e a contornava e tocava o cume e de novo manobrava para retornar. Os olhos atuais cansaram de seguir o bailado das asas. Os pés cansaram da areia banhada pela água salgada. O corpo, fatigado, ganhou o chão fresco, deleitando-se com a brisa.

O corpo do pássaro não cansava.  Ia e vinha e rodeava e fazia manobras e recrutava novo pássaro na memória de outra era. O pássaro de seu afeto, que pousava em seu braço, apanhava alimento de suas mãos, soltava sons esganiçados e ganhava o céu, sem nunca perde-se na imensidão azul ou branca.

À memória do som estrídulo, respondeu  fixando os olhos na pedra aguda que ponteava o morro, onde o pássaro de agora abria e fechava as asas. A ave repetiu o movimento incontáveis vezes e subiu ao céu, deixando no lugar a figura apenas delineada e transparente de um velho. Os olhos de agora nada viam, mas os da memória cobriram o delineamento de traços, dando forma a poderosa figura.

Perdeu-se do mundo ao redor. Migrou para a pedra de outra era e através dos olhos da imagem recriada, viu o mar arrastando o corpo para dentro de si. Do alto de seu penhasco, a poderosa imagem, a via morrer, inerte.

Novo canto estridente e os olhos pousaram no fractal que o sol dispunha no pico do morro. Almas em fragmentos e que ainda assim,  atravessam o tempo e o espaço como indissolúveis holons.

 

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