Lá vem Maria

SOLUÇÕES DE ESPEVITADO

dez 29, 2011 por

Diziam ao Espevitado que aquele era lugar de terra roxa, mas ele, veementemente, discordava. O que via grudado aos pés, era massa vermelha, quase marrom, que sustentava cafezais, pomares e milharais. Já não sustentava matas, senão no entorno dos riachos e rios. Homens brancos com seus machados afiados deitaram ao chão troncos imensos. Tão grandes que para serem abraçados, exigiam braços de vários homens e para serem tombados muitas e muitas horas de fortes machadadas. Era o que contavam seus pais, porque na época ele da morte das árvores de troncos de muitos braços, nem havia chegado a esse mundo contraditório e disparatado.
Espevitado ficava acabrunhado sempre que ouvia as histórias dos colonizadores do lugar. Na cabeça as questões cresciam e  acumulavam. Precisava mesmo derrubar tudo? Quem disse que os bois não viveriam felizes entre árvores imensas? Não bastava limpar em baixo e deixar umas clareiras? E para que plantar tanto café? As matas que as fotografias amareladas e sem cor mostravam,  não escondiam o que comer? Para que fotografias daquilo que nunca poderia ver nem experimentar? Para que matar tanta planta e tanto bicho? Para que encher o mundo de café? Índio não vivia sem café e não dava um jeito de ter mandioca sem derrubar tudo?
O menino cresceu, mudou de cidade, intelectualizou, mas a alma cultivou o Espevitado.

Alma de Espevitado é alma que não cala. Alma que não cala vive sofrendo podas. Alma podada é alma consternada. Assim seguia o homem, sufocado entre prédios e carros, tentando ver luz onde não encontrava janela.

Espevitado não encontrava janela, mas depois da porta havia uma rua e lá pela rua ia Melina, arisca, sempre pronta para a defesa;  Dudu, que querendo ou sem querer destruía tudo que lhe caía nas mãos; Rosinha, que a qualquer sinal de violência sumia num canto qualquer e lá ficava encolhida; Nena, que nunca pensava, revidava antes e olhava o adversário depois; Juju que respondia aos ataques com  gritos estridentes enquanto João tapava os ouvidos.

O Espevitado que vivia no homem espreitava e sussurrava e apontava e insistia, até que o homem entendeu, deu costas aos prédios e carros e seguiu rua acima e rua abaixo, reaprendendo a viver.

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TRILOGIA DA FÊNIX: O VESTIDO AZUL

nov 8, 2011 por

Desejava ter cadernos organizados, títulos sublinhados em vermelho, letra bonita, conteúdos seqüenciados, cada qual em seu lugar. Desejava e tentava. Mas sem mais nem menos, um após outro, os cadernos ficavam magros, cheios de desenhos inacabados e de anotações pessoais. A língua portuguesa migrava para o meio da aritmética ou vice-versa e o tal dos estudos sociais viravam um ninho de amafagafos.

Não seria diferente com seu guarda roupa, mas lá quase não podia por a mão. Os vestidos, cuidadosamente arrumados só podiam ser retirados sob supervisão. A cômoda, por sua vez…
A cômoda, aquele móvel onde ficavam as roupas do dia-a-dia era o melhor exemplo de caos que a família conhecia. A mãe ralhava, a irmã mais velha reclamava e ela tentava e tentava, mas sem mais nem menos as roupas saiam do lugar e se entrelaçavam voluntariosamente.

Dos vestidos cuidadosamente arrumados e protegidos, só gostava de dois. Um branco, de corte simples, sem manga ou gola, sem laços ou fitas, sem saias nem sobre saias. Sua beleza estava na trama de pequenas e delicadas rendas, que não deixavam espaço para adereços. O outro, em tecido leve de cor azul tinha um detalhe singular: as mangas três quartos em formato de sino. Gostava da cor, do corte simples e das mangas, que em vez de fechar, abriam.

Fosse dona de suas escolhas, nas ocasiões especiais só lançaria mão de uma dessas peças. Mas não era. E para encerrar as questões, mais que para agradar à mãe, vez ou outra aceitava uma das tantas vestimentas cheias de firulas e salamaleques.

Foi assim, tentando ter novo um caderno para retomar o propósito da organização, que juntou os trocados que sobravam aqui e acolá e recorreu à papelaria. Escolheu a cor da capa, viu os preços, contou o dinheiro. Estava pronta para encerrar a negociação, mas ao lado do caixa, bem ao lado mesmo, havia uma nova vitrine. Pequena, mas cheia de presilhas, brincos, pulseiras e colares. Peças brilhantes e coloridas, diferentes das jóias que as irmãs vez ou outra ostentavam e infinitamente mais em conta.
Parou, contou e recontou o dinheiro, ameaçou pagar o caderno e ir embora, mas lá no meio das bugigangas, bem no meio mesmo, descobriu uma presilha azul. Tão azul quanto o seu mais belo vestido. Não bastasse, tinha numa das pontas uma pedra branca, tão branca quanto seu outro vestido. E do lado, bem do ladinho da presilha repousava uma pulseira linda, ligeiramente mais escura.

Pensou e repensou. Voltou a contar o dinheiro, considerou o tempo que havia gasto para juntar a quantia, vislumbrou a possibilidade de abrir mão de sorvetes e chicletes, lembrou que o proprietário era cliente mensalista de seu pai e fez seu primeiro crediário.

Fez, tropeçou na capacidade de execução do plano de pagamento e esqueceu a dívida. Mas o homem, antigo proprietário das peças e cliente de seu pai não esqueceu. Tanto lembrou que numa tarde qualquer o pai, que pouco lhe dirigia a palavra a interpelou. O dono da papelaria, que nem precisava daquela quantia ínfima, na hora de pagar as contas do mês havia apresentado a nota da presilha e da pulseira.

Já tinha retesado o corpo esperando imensa represália, mas o homem nada fez alem de alertá-la. Não faltava dinheiro à família. Portanto podia ter seus enfeites sem que para tanto o envergonhasse com falta de pagamento. Concluir recomendando que lhe pedisse e traria os adornos desejados.
Ficou envergonhada, talvez ainda mais que o pai, frente ao cobrador. Mas ao saber que o pai nada falaria à mãe, comemorou, feliz, a única aliança familiar. Logo esqueceu a questão e na primeira oportunidade deixou que a faceirice a contagiasse enquanto exibia vestido e adornos.

Não ganhou nenhum novo enfeite do pai, que simplesmente sumiu sem deixar rastro.

E, tentando minimizar confrontos, cresceu entre organzas e sedas, sapatos de verniz, brincos de pérolas e armários, que nunca seguiam as normas maternas. Cresceu ressentindo-se da ausência do aliado, que denominou traidor. Cresceu e finalmente descobriu que o homem cortês e de poucas palavras, fora levado à força e desapareceu nos meandros da ditadura. De posse da verdade, rompeu com os tecidos de nome e renome, conseguiu uma vaga num curso artes e para comemorar, tingiu o vestido de linho branco com o mais intenso dos azuis que encontrou num armazém sem eira nem beira.

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DESPUDORADAMENTE FELIZ

out 31, 2011 por

Abriu e fechou os olhos uma dúzia de vezes. Puxou o pendulo da persiana, rolou para o outro lado da cama e voltou a dormir até que o sol pintasse a parede oposta. Ajoelhou junto à janela e sobrevoou a cidade cinzenta e plana. Ao fundo, as nuvens e num rasgo, o sol de primavera. Olhou e olhou, respirou fundo, deu vez à preguiça, escorregou entre lençóis, puxou a colcha sobre o corpo, inspecionou a mobília impessoal do quarto de hotel e deixou que a alegria da antecipação tomasse o corpo.
Logo estaria com os filhos, logo reencontraria seu companheiro, logo voltaria para casa.

A menina enxerida que vive na alma da mulher, num salto, se impôs. Desta vez não mostrou a costumeira faceta tímida e retraída. Crêem que surgiu desligada, imersa em livros, como era de praxe? Não. Desta feita não foi esse o ângulo que a atrevida trouxe à tona.
Inesperadamente a intrometida e indiscreta menina da alma brotou plena de satisfação.

De imediato a mulher a reconheceu. Era a moleca que brincava de pega no pátio da escola, que adorava correr atrás das pipas, subir em trapézios improvisados, escorregar no barro da rua, apanhar frutas em árvores difíceis de escalar, rir de qualquer bobagem que atravessasse o dia…

De imediato a mulher a reconheceu. Era a moleca dona de ímpetos que não floresciam na família onde o árduo trabalho era regra e a dignitude imperava, forjada pela castração da alegria.

Crêem que a menina deixou-se castrar?
Não. Escondeu, envolto em muitas máscaras , o desejo ardente, a vitalidade, o brilho que trazia em si. Escondeu tão bem escondido que muitos e muitos acreditaram que a luz não morava nela. Escondeu até o tempo em que perdeu o acesso ao seu mais precioso lado e entre máscara, ficou  sufocada.

Crêem que se deixou abater?
Não. Lutou. Fez estardalhaços. Brigou, gritou, tentou arrebentar as paredes de máscaras a ferro e fogo, até que descobriu brechas e brechas, fez-se fluídica e escorregou entre elas, resgatou sua fonte.

A mulher fechou e abriu os olhos uma dezena de vezes, percorreu a esterilidade do quarto de hotel e aportou no próprio peito pleno de alegria. Atentou ao zelo devotado aos filhos, ao companheiro, às pessoas da família entupida de forja e castra, aos amigos, aos desconhecidos que atravessavam sua estrada, à vida. Afagou a menina tinhosa que trazia em si e saltou da cama, pronta para ser despudoradamente feliz.

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AMORES DE BRANCONA

out 1, 2011 por

Todos se referiam a ela como “a brancona”. Poderiam chamá-la de “a estranha”, “a esquisita”, “a reclusa” e qualquer dos apelidos refletiriam, com honestidade, sua condição. Mas na vila de pescadores todos eram morenos jambo ou negros, viviam expostos ao sol escaldante e à água salgada do imenso mar. Ela, ao contrário, dona de pele branca que rejeitava os intensos raios da linha do Equador, não se expunha.
Ganhou o apelido, riu quando a avisaram do adereço e continuou a cuidar do que deveria ser cuidado.

A brancona tinha sonhos que não compartilhava. Tinha projetos  a espera do tempo certo para germinar. Tinha, principalmente, dois imensos afetos, que apesar dos destemperos, cultivava no cotidiano.

O dia de afazeres começava antes das sete da manhã e seguia sem pausa até as sete da noite. E então, seus amores, que durante o dia, alimentava e vigiava nas brechas da labuta, ganhavam o primeiro plano.
Quando o mais novo dos meninos completou seis meses, decidiu que estava na hora de incluir pequenos passeios à vida de quase clausura. E sob a lua, saía pelo vilarejo, carregando o mais novo grudado ao peito, apoiado pelo apetrecho de pano e o mais velho atracado a uma das mãos.

No primeiro passeio a brancona ganhou nova designação. Passou a ser a “mãe do galeguinho”. E galeguinho era celebridade. O primogênito, tendo herdado a boa pele do pai, rodava a vila com ele, expondo os cabelos loiros que o sol havia prateado e fazendo admiradores por sua eloquência.
A princípio a brancona riu do novo título, mas não deixou de sentir incomodo pelo assédio ao filho, que achou excessivo. Temeu que a diferença de cabelo e pele desencadeasse presunção, mas não desistiu dos passeios noturnos. Todavia  impôs distância aos fãs do menino. Enquanto vencia as ruas, cumprimentava a todos com simpatia, mas nunca parava nas rodas de prosa, nem dava trela aos confetes de alguns insistentes.
Tomou como regra, seguir no embalo da brisa, até a sorveteria. Lá, continha o riso, vendo o menino de colo, avançar sobre o sorvete do irmão logo que o seu acabava. Achava exagero dar-lhe um sorvete inteiro, mas cedeu à gula do pequeno às reclamações do galeguinho.
No percurso de volta para casa, a parada no forró era obrigatória. Ficava à porta com o menor, enquanto dava ao outro, a chance de rodopiar na pista, até cansar.

Os filhos encerravam a noite na rede. Cada qual de um lado da mulher, que ao meio, cantarolava misturas de folclores e coisas inventadas, até que adormecessem.  Depois de colocar cada qual em sua cama, brancona gastava bom tempo cultivando a ternura desabrochada daqueles rostos doces. Só então, com a alma apaziguada ia alimentar os outros sonhos, para que ganhassem corpo na mesma medida que haveriam de crescer os seus meninos.

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O MENINO DA PORTA DO BANCO

set 21, 2011 por

Descobri que o menino da porta do banco,
Aquele que recolhe das mesas fartas, as migalhas,
Pensa como meu filho,
Sente como meu filho,
Mas não sonha como sonha meu bem cuidado filho.

Descobri que o menino da porta do banco,
Aquele que recebe a piedade que destronou a justiça,
Argumenta como meu filho,
Raciocina como meu filho,
Mas não vai bem na escola como vai meu bem amado filho.

Descobri que a escola,
Que muito acredita em meu filho,
Não acredita no menino da porta do banco.

(Escrito em 2000 e dedicado aos meninos que, com meu trabalho, não consegui ajudar a resgatar)

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