Lá vem Maria

DESPUDORADAMENTE FELIZ

out 31, 2011 por

Abriu e fechou os olhos uma dúzia de vezes. Puxou o pendulo da persiana, rolou para o outro lado da cama e voltou a dormir até que o sol pintasse a parede oposta. Ajoelhou junto à janela e sobrevoou a cidade cinzenta e plana. Ao fundo, as nuvens e num rasgo, o sol de primavera. Olhou e olhou, respirou fundo, deu vez à preguiça, escorregou entre lençóis, puxou a colcha sobre o corpo, inspecionou a mobília impessoal do quarto de hotel e deixou que a alegria da antecipação tomasse o corpo.
Logo estaria com os filhos, logo reencontraria seu companheiro, logo voltaria para casa.

A menina enxerida que vive na alma da mulher, num salto, se impôs. Desta vez não mostrou a costumeira faceta tímida e retraída. Crêem que surgiu desligada, imersa em livros, como era de praxe? Não. Desta feita não foi esse o ângulo que a atrevida trouxe à tona.
Inesperadamente a intrometida e indiscreta menina da alma brotou plena de satisfação.

De imediato a mulher a reconheceu. Era a moleca que brincava de pega no pátio da escola, que adorava correr atrás das pipas, subir em trapézios improvisados, escorregar no barro da rua, apanhar frutas em árvores difíceis de escalar, rir de qualquer bobagem que atravessasse o dia…

De imediato a mulher a reconheceu. Era a moleca dona de ímpetos que não floresciam na família onde o árduo trabalho era regra e a dignitude imperava, forjada pela castração da alegria.

Crêem que a menina deixou-se castrar?
Não. Escondeu, envolto em muitas máscaras , o desejo ardente, a vitalidade, o brilho que trazia em si. Escondeu tão bem escondido que muitos e muitos acreditaram que a luz não morava nela. Escondeu até o tempo em que perdeu o acesso ao seu mais precioso lado e entre máscara, ficou  sufocada.

Crêem que se deixou abater?
Não. Lutou. Fez estardalhaços. Brigou, gritou, tentou arrebentar as paredes de máscaras a ferro e fogo, até que descobriu brechas e brechas, fez-se fluídica e escorregou entre elas, resgatou sua fonte.

A mulher fechou e abriu os olhos uma dezena de vezes, percorreu a esterilidade do quarto de hotel e aportou no próprio peito pleno de alegria. Atentou ao zelo devotado aos filhos, ao companheiro, às pessoas da família entupida de forja e castra, aos amigos, aos desconhecidos que atravessavam sua estrada, à vida. Afagou a menina tinhosa que trazia em si e saltou da cama, pronta para ser despudoradamente feliz.

ler mais

Posts Relacionados

Compartilhar

PIRUETAS E MALABARES

set 16, 2011 por

A mãe o chamava espevitado. A vizinha, traquinas. O homem do norte que tinha quitanda na esquina se referia a ele como “o buliçoso”. Mas eu, quando olhava aquele espeto de gente cruzando o pátio entre saltos e cambalhotas, via o sol explodindo entre nuvens.

Nunca parava. Enchia cadernos com criações que sobressaiam às lições. Expunha ideias esdrúxulas em meio as explicações e dúvidas sagazes que apontavam a estreiteza dos conteúdos acadêmicos.

Morava bem perto da escola e juro, não lembro vê-lo usar o portão. Chegava correndo à casa, jogava a mala para o quintal, batia uma das mãos no muro, atirava as pernas finas e longas para o ar e lá ia corpanzil magricelo para o outro lado.

Os cabelos negros que não deixava cortar balançavam, subiam, desciam se acomodando ao andar desengonçado, enquanto os olhos amendoados e irrequietos passeavam pelo entorno.

Espevitado, traquinas, buliçoso era também o dono do maior coração do mundo. Esse, o coração, vivia arranhado, porque mal cabia no tórax minúsculo. As coisas do mundo o indignavam. Não suportava ver alguém subjugado, maltratado ou ofendido que assumia as dores. Assumia e sofria as consequências. Revidava batendo portas, pintando monstrengos e rabiscando caricaturas. Mas logo esquecia os dissabores e seguia em frente, fazendo piruetas, saltando muros, interrompendo aulas com perguntas que incomodavam.

Não foi adolescente rebelde, apenas espevitado, traquinas e buliçoso. Acho que saltou alguma fase da vida porque logo era profissional criativo, requisitado e, liderança devastadora. Os colegas o queriam ao lado sempre que uma necessidade se tornava reivindicação. Do outro, os contratantes o desejavam longe de qualquer conversa. Mas sabiam que para afastá-lo teriam, também, que que abdicar dos seus devaneios que desembocavam em campanhas top de linha.

Ninguém espera que espevitado, traquinas e buliçoso mudasse, mas ele mudou. O primeiro sinal da estranha transformação apareceu durante uma reunião entre colegas e contratantes. Pouco falou, nada aceitou e ao final escreveu: estão sempre querendo um Joaquim José da Silva Xavier.O espaço vazio incomodou um e outro até que uma colega assumiu a liderança. Instantes depois ele registrava: enfim, conseguiram uma Joana D’Arc.

Os contratantes respiravam aliviados, mas o alivio não durou muito. Uma reunião para encaminhar novas campanhas resultou desastrosa. O homem de rosto afilado, não mexeu os cabelos e os olhos amendoados permaneceram fixos, como se atravessassem os apresentadores.

O publicitário, antes espevitado, traquinas, buliçoso havia enfrentado entreveros e mais entreveros e o cansaço o tomou. Sei que andou adoecendo. A garganta não cessava de obstruir, a irritabilidade ia e vinha e, às vezes perdurava. O sono entrecortado não era novidade, mas a insônia crescia e incomodava. E ele, aderindo aos remédios e ao cigarro, tornou-se o homem das sombras.

Um dia, indo de casa ao trabalho, o homem das sombras trombou com velho dono da quitanda que, furioso, gritava com um moleque buliçoso que dava cambalhotas entre caixas que havia empilhado na calçada. Logo a mãe apareceu para agarrar o braço do espevitado e arrancá-lo da rua. Foi quando o homem das sombras se aproximou do menino, afogou os cabelos de fogo e sorriu seu velho riso maroto.

Neste dia chegou ao trabalho derretendo tacanhices com  argumentos mirabolantes. Os contratantes sorriram, acreditando que o publicitário  arguto  retornava sem avisar. Mas a alegria não duraria muito. Numa página qualquer da agenda ele havia  anotado: nem Xavier, nem D’Arc. Talvez ensinar piruetas e  malabares. E assinou Professor Traquinas.

ler mais

Posts Relacionados

Compartilhar