Lá vem Maria

ELE QUEBROU MINHAS LENTES COLORIDAS

ago 9, 2015 por

IMG_8166.1Cresci no regime militar. Vivi a adolescência e a juventude numa ditadura. Não fui vítima direta, não esbarrei na opressão, não sofri as consequências imediatas do desvio do caminho. O regime pareceu não nos atingir, exceto quando o bom homem, prefeito da cidadezinha onde nasci, deixou o cargo e a família e fugiu para não ser preso. Ele era comunista e com o golpe os comunistas perdiam a condição de pessoas e se transmutaram em inimigos da pátria.
Semelhante a uma de forasteira desatenta transitei protegida pela feiura que atingia o país. Em 1970 segui os adultos do entorno e vibrei com a conquista do tetra. Vi os jogos, comemorei as vitórias e desfilei pelas ruas, tomada pelo sentimento de bem estar que o título oferecia.
Na época, por escolha de minha mãe, estudava em um colégio da rede Marista e lá aprendi o que a neutra ciência tem a oferecer. Atualmente diriam que era uma educação não ideologizada e algumas décadas atrás, talvez concordasse. Hoje, não mais. Sei que há uma ideologia impregnada nos conteúdos de versão única – a do vencedor ou do dominador, como me parece mais correto qualificar.
Tinha pouco mais de 18 anos quando o mundo das fórmulas neutras sofreu a primeira rachadura. Estava em Campo Grande, atual capital do Mato Grosso do Sul, hospedada com uma família que alugava dois dos quartos da casa. Aguardava o vestibular e no intervalo dos estudos exercia o direito inalienável de quem ainda está com um pé na adolescência: experimentar, ser inconsequente e incoerente, fazer coisas estúpidas e aprender com os erros.
Lá vivia um homem, funcionário público, respeitoso e reservado. Ele era psicólogo e eu, vestibulanda de psicologia. A coincidência nos permitia algumas conversas cordiais, mas não tinha lucidez suficiente para aproveitar a oportunidade e aprender com a simples troca de experiências.
Não lembro o nome do homem; não saberia calcular sua idade e se perguntei qualquer coisa sobre sua vida, ficou no esquecimento. Resgato uma situação, um único fato que veio à tona após assistir uma série de vídeos de entrevistas com adolescentes que foram ao ato de 15 de março  de 2015.
Não sei exatamente de que falávamos ou por que falávamos, mas lembro de meu arroubo de arrogância ou necessidade de afirmação que me fez declarar, com o mais completo desconhecimento de causa, que o governo militar era bom para o Brasil.
Antes que concluísse, a voz contundente e irada do homem, até então pacato e gentil, interrompeu : nunca fale daquilo você não sabe!
Percebo que, com o tempo, o ambiente onde estávamos virou esboço, mas as palavras do homem, não. Estão marcadas com tamanha clareza que quarenta anos parecem dias. Mesmo assim afirmo que não foi sua a fala que causou maior impacto. Trago, nítida e forte, a reação indignada . Sua energia e suas emoções me atingiram e invadiram. Um misto de dor desesperada e silenciosa, para a qual era preciso recrutar força e superação diárias. Dor, indignação, raiva e a obrigatoriedade de calar para sobreviver não foram, de imediato, assimilados por mim. Mas o baque das emoções quebrou meus escudos e abriu uma fresta. Alagarda constantemente, a ruptura permitiu a empatia e o entendimento que sustentam a solidariedade.
Depois da aprovação no vestibular não voltei a ver o homem, mas o lado obscuro da ditadura continuou a sujar minhas adoradas lentes coloridas. Já não era possível transitar incólume pelo mundo.
No ano seguinte Dom Evaristo Arns, Plínio Marcos e um jornalista de Brasília trouxeram retratos crús do país que eu acreditava ser uma pátria acolhedora e de infinitas oportunidades.
No inicio dos anos 80 nada restou de minhas lentes. A morte de uma pessoa querida, que após sair da prisão carregava consigo o pânico pelas torturas sofridas me obrigou, definitivamente, a conviver com o lado sombrio de meu país. Muitas vezes perdi a fé e a esperança. Tantas outras as reconstruí.
Quase quarenta anos depois de tropeçar pela primeira vez na realidade, vendo adolescentes pedindo intervenção militar, não os julguei. Lembrando de meu próprio universo de adolescente, de minha antiga necessidade de afirmação. Exercem seu inalienável direito de cometer ações equivocadas e aprender com elas. Mas não posso deixar de me indignar com aqueles que, com conhecimento de causa e excesso de recursos, abusam inescrupulosamente dessas necessidades, as usando para causar danos a todos nós. Muitos são mais que coniventes com a tortura e a morte de pessoas que lutavam, movidos pelo sonho de um país mais justo. Digo que são mais que coniventes, porque entendo que são cúmplices. Sabem o que fazem, conhecem as consequências, mas não reconhecem o outro como pessoa de igual direito. Manipulam, recrutam, levam milhares aos atos que beiram shows de estrelas ou carnaval fora de época. E, ao mesmo tempo, apoiam, sem escrúpulos, o envio dos mesmos adolescentes aos presídios de intolerável violência. Presídios que,  provavelmente, estão nas listas das futura privatizações.

Depois de ver os inúmeros vídeos de depoimentos, colhidos nas manifestações induzidas, desejei rever o homem que não me poupou da verdade. Gostaria de conhecer sua história e agradecer.

 

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TRILOGIA DA FÊNIX: O VESTIDO AZUL

nov 8, 2011 por

Desejava ter cadernos organizados, títulos sublinhados em vermelho, letra bonita, conteúdos seqüenciados, cada qual em seu lugar. Desejava e tentava. Mas sem mais nem menos, um após outro, os cadernos ficavam magros, cheios de desenhos inacabados e de anotações pessoais. A língua portuguesa migrava para o meio da aritmética ou vice-versa e o tal dos estudos sociais viravam um ninho de amafagafos.

Não seria diferente com seu guarda roupa, mas lá quase não podia por a mão. Os vestidos, cuidadosamente arrumados só podiam ser retirados sob supervisão. A cômoda, por sua vez…
A cômoda, aquele móvel onde ficavam as roupas do dia-a-dia era o melhor exemplo de caos que a família conhecia. A mãe ralhava, a irmã mais velha reclamava e ela tentava e tentava, mas sem mais nem menos as roupas saiam do lugar e se entrelaçavam voluntariosamente.

Dos vestidos cuidadosamente arrumados e protegidos, só gostava de dois. Um branco, de corte simples, sem manga ou gola, sem laços ou fitas, sem saias nem sobre saias. Sua beleza estava na trama de pequenas e delicadas rendas, que não deixavam espaço para adereços. O outro, em tecido leve de cor azul tinha um detalhe singular: as mangas três quartos em formato de sino. Gostava da cor, do corte simples e das mangas, que em vez de fechar, abriam.

Fosse dona de suas escolhas, nas ocasiões especiais só lançaria mão de uma dessas peças. Mas não era. E para encerrar as questões, mais que para agradar à mãe, vez ou outra aceitava uma das tantas vestimentas cheias de firulas e salamaleques.

Foi assim, tentando ter novo um caderno para retomar o propósito da organização, que juntou os trocados que sobravam aqui e acolá e recorreu à papelaria. Escolheu a cor da capa, viu os preços, contou o dinheiro. Estava pronta para encerrar a negociação, mas ao lado do caixa, bem ao lado mesmo, havia uma nova vitrine. Pequena, mas cheia de presilhas, brincos, pulseiras e colares. Peças brilhantes e coloridas, diferentes das jóias que as irmãs vez ou outra ostentavam e infinitamente mais em conta.
Parou, contou e recontou o dinheiro, ameaçou pagar o caderno e ir embora, mas lá no meio das bugigangas, bem no meio mesmo, descobriu uma presilha azul. Tão azul quanto o seu mais belo vestido. Não bastasse, tinha numa das pontas uma pedra branca, tão branca quanto seu outro vestido. E do lado, bem do ladinho da presilha repousava uma pulseira linda, ligeiramente mais escura.

Pensou e repensou. Voltou a contar o dinheiro, considerou o tempo que havia gasto para juntar a quantia, vislumbrou a possibilidade de abrir mão de sorvetes e chicletes, lembrou que o proprietário era cliente mensalista de seu pai e fez seu primeiro crediário.

Fez, tropeçou na capacidade de execução do plano de pagamento e esqueceu a dívida. Mas o homem, antigo proprietário das peças e cliente de seu pai não esqueceu. Tanto lembrou que numa tarde qualquer o pai, que pouco lhe dirigia a palavra a interpelou. O dono da papelaria, que nem precisava daquela quantia ínfima, na hora de pagar as contas do mês havia apresentado a nota da presilha e da pulseira.

Já tinha retesado o corpo esperando imensa represália, mas o homem nada fez alem de alertá-la. Não faltava dinheiro à família. Portanto podia ter seus enfeites sem que para tanto o envergonhasse com falta de pagamento. Concluir recomendando que lhe pedisse e traria os adornos desejados.
Ficou envergonhada, talvez ainda mais que o pai, frente ao cobrador. Mas ao saber que o pai nada falaria à mãe, comemorou, feliz, a única aliança familiar. Logo esqueceu a questão e na primeira oportunidade deixou que a faceirice a contagiasse enquanto exibia vestido e adornos.

Não ganhou nenhum novo enfeite do pai, que simplesmente sumiu sem deixar rastro.

E, tentando minimizar confrontos, cresceu entre organzas e sedas, sapatos de verniz, brincos de pérolas e armários, que nunca seguiam as normas maternas. Cresceu ressentindo-se da ausência do aliado, que denominou traidor. Cresceu e finalmente descobriu que o homem cortês e de poucas palavras, fora levado à força e desapareceu nos meandros da ditadura. De posse da verdade, rompeu com os tecidos de nome e renome, conseguiu uma vaga num curso artes e para comemorar, tingiu o vestido de linho branco com o mais intenso dos azuis que encontrou num armazém sem eira nem beira.

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