Lá vem Maria

MARTE PRECISA DE MÃES QUÍTCHUAS

ago 26, 2011 por

Em dezembro de 1983 desci os Andes sobre o tanque de um caminhão, em noite de chuva, em companhia de mulheres da etnia quítchua.
Dito assim parece uma aventura radical. Mas eu era a única mulher inconseqüente a participar da peripécia. As demais simplesmente cumpriam com o que lhes cabia cumprir, e o faziam sem improviso.
O caminhão que servia ao transporte de combustível estava vazio, portanto, liberado para transportar pessoas e suas mercadorias. A adaptação estava restrita a uma escada acoplada ao tanque e uma “cerca de segurança” sobre o mesmo. As mulheres quítchuas arrumaram suas trouxas de mercadorias, que também serviam de encosto e eu as imitava. Depois de acomodar a mochila, entrei no saco de dormir impermeável, que imaginava suficiente e tentei relaxar. Seria apenas uma noite, sobre um tanque, numa estrada estreita, de chão batido, cercada de precipícios, aos três mil metros de altitude, entre desconhecidas que falavam entre si num dialeto que desconhecia.
Elas desataram seus cobertores de alpaca e cobriram seus chapéus, suas muitas blusas e saias, seus sapatos. Creio que não se moveriam músculo, não fosse a chuva fina e fria que começou a cair. Uma delas sacou um plástico e sem alarde começou a armar uma tenda. As demais a auxiliaram e sem perguntas me incluíram na cobertura. Mais tarde falaram entre si e, creio que concordaram que meu saco de dormir não era tão eficiente quanto seus cobertores. Desataram outra peça e me ofereceram.
As mulheres eram as transportadoras e as comerciantes de seus produtos. Plantavam, colhiam, embalavam, carregavam, exigiam, brigavam, exerciam os princípios de seu povo.

Foi minha primeira incursão num universo deliciosamente destoante do meu. Uma incursão rápida, sem muito tempo para apropriação desse outro modo de viver, mas com marcas suficientes para que quisesse voltar. E voltei.                                                                                                              
Viajei em ônibus precários, sem banheiro, sob o pó das encostas andinas. Atravessei parte do território boliviano sobre carrocerias de caminhão, apinhadas de homens, mulheres e crianças. Nunca presenciei uma cena de birra. Não me recordo de crianças irritadas, chorando sem parar. E elas estavam por todos os lugares, calmamente aconchegadas nas costas de suas mães. E ali comiam e dormiam, silenciosamente.

Não sei como esses povos vivem na atualidade. Talvez enfrentem maiores dificuldades que na década de oitenta. Talvez tenham avançado em sua luta pelos seus direitos. Mas não sucumbiram nesses quinhentos de colonização e creio que não sucumbirão às intempéries globais.
Lembrei das mães quítchuas quando vi o filme Marte Precisa de Mães. Lembrei também de uma fala da personagem Julia, da peça “Foi Bom Pra Você? Ou Escola de Sexo Para Homens” postada na categoria Dramaturgia deste blog. Ela diz:

Essa coisa de igualdade de direitos têm mais efeito colateral que curativo. Eu não sei se quem inventou isso foram as feministas ou os donos de grandes capitais. Se foram as feministas, o resultado tem sido desastroso. Mais aumentaram as obrigações que igualaram direitos. Se foram os capitalistas, a estratégia foi de extrema eficiência. Conseguiram mão de obra abundante, menores salários, maior agressividade na disputa de mercado”.

Certamente, tanto quanto Marte, a América precisa de mães. Mas antes de atearmos pedras às feministas, aprendamos as lições ensinadas pelas mães não colonizadas.

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O PRAZER DAS PALMAS RITMADAS

ago 22, 2011 por

Na década de sessenta, talvez no mesmo ano em que o prefeito de minha cidadezinha de interior teve que fugir para não ser preso, eu desfilava de branco. À frente, a fanfarra. Na sequência nós, alunos e alunas do Grupo Escolar Olavo Bilac e do Ginásio Professor Giampero Monacci.
As ginasianas usavam saias azul marinho e camisas brancas, mas nós íamos de guarda-pós brancos sobrepostos aos vestidos e acompanhados pelas meias três quartos, também brancas, e sapatos pretos.
Na época não atinava com o motivo da fuga do prefeito. Homem simpático, inteligente, simples, pacífico e pai de minhas colegas de escola. Mas o acontecido era fato quase periférico. Algo posto no mundo global ou, talvez, na borda, no limite entre meu universo e o universo maior. O desfile de sete de setembro, ao contrário, tinha relevância maior. Para ele ganhei sapatos novos, meias novas, guarda-pó novo. Queria fazer tudo certo, desfilar direitinho, mas a verdade é que de tempo em tempo recebia de uma das professoras uma leve cutucada e o aviso: acerte o passo.

Mais de quarenta anos depois descubro que guardo do homem e de sua família, imagens semelhantes as das fotos antigas e amareladas,  que com o tempo perderam a nitidez. Fotos que carreguei comigo enquanto descobria que a discordância é duramente penalizada desde o inicio do que designamos “civilização”. Descubro também um elo sutil, uma espécie de solidariedade camuflada dirigida ao homem e à sua família.

Mais de quarenta anos e descubro que vivi, secretamente, tentando “acertar o passo”.
Marchar ou bater palmas em harmonia com o grupo? Não, ainda não consigo. Não dou conta de dar constância aos intervalos, de manter a força nas batidas ou repetir uma sequência determinada. Mas descobri o prazer de bater minhas palmas ritmadas.
Parece supérfluo, esquisito, irrelevante?
Não para uma criança que em meio aos colegas, luta com o seu próprio corpo para acompanhar o exercício coletivo.

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OPS! DEFLOCULEI OS NÓS.

jul 23, 2011 por

Acordei estranha. Bem estranha.
Ao sair da cama portava uma leveza de quem perdeu alguns quilos enquanto dormia. Olhei a imagem do espelho e os quilos estavam no mesmo lugar, mas a leveza persistiu. E além dela, outros sintomas fenômenos: maleabilidade, mobilidade, alegria, disposição.
Não dava pra deixar rolar e então, enquanto organizava o material necessário ao dia de trabalho fui puxando os fios de alguns nós. Lembrei as rasteiras que levei e elas já não eram rasteiras, mas fatos consumados e agora descartados, que naqueles momentos serviram para alguma coisa que não lembro. Pensei nas pessoas que me magoaram, mas a mágoa já não estava lá. E as lembranças apareceram em companhia de um discernimento constrangedor. Uma espécie de entendimento multifacetário que meu repertório não permite explicar. E as dores? Essas, creio, entraram em férias ou partiram sem qualquer aviso. A decepção, onde foi parar? Os feixes de frustração?
ilustração: Erly RicciSem mais nem menos, acordei com a  respiração fácil,  bem estar corporal e fluidez das boas emoções: coisas esquisitas acontecendo num dia comum de trabalho. O jeito foi acomodar-me ao imprevisto e começar a produção dos objetos de cerâmica. Primeiro, a água no batedor de barbotina. Depois, com a máquina em atividade, a argila seca adicionada aos poucos, junto com um tanto de caulim e outro de filito. Ao creme tão espesso quanto vitamina de abacate adicionei, para finalizar, gotas de defloculador. Num instante, o creme virou líquido fino, que rodava ao impulso da hélice, exibindo mechas acetinadas.

OPS! Entendi a estranheza toda!

Cinco meses de Florais de Bach e defloculei os nós.

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MEU PAI, O PAI DE MEUS FILHOS, MEUS FILHOS

jul 21, 2011 por

“Os homens são difícies…permita-me dizer de que maneiras.”
A declaração não foi feita por uma mulher, mas por um homem, psicólogo, autor do livro “SE OS HOMENS FALASSEM… “. Ainda não li a obra de Alon Gratch, mas o titulo do primeiro capítulo, a frase inicial do texto, fez com que a vasculhasse ligeiramente. Conclui que o livro merece atenção. Mas antes é relevante declarar: não sei como serão os filhos de meus filhos, mas reconheço nas três gerações pelas quais transito,  a silenciosa transformação da condição masculina.

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O CAMINHO DO OUTRO

jul 15, 2011 por

 

Certo, errado, bom, ruim, bonito, feio, confiável, desonesto: ínfima lista de infinitos julgamentos.

Alegria e tristeza, vitória e fracasso, reconhecimento  e anonimato,  frustração e realização: poucos exemplos de inúmeras polarizações .

Ética, justiça, disciplina, integridade, confiabilidade, desapego, força, determinação:  alguns valores que sustentam julgamentos e posições.

É possível explicar condutas  a partir dos valores. Mas não sei se a teorização nos possibilita compreender o outro.

foto:silzi mossato

 

Há quem faça das habilidades, dádivas. Outros, sementes em solo árido.

Uns brilham sem grandes esforços.Outros colhem parcos frutos depois de muita labuta.

 

Cada individuo vive sua história como mergulhador em mar denso. Mas basta olhar a distância para  enxergar saídas, caminhos e possibilidades que o dono de outra história não vê. E sem discernimento,  o julgamos. Ou tentamos incansavelmente apontar uma direção, mostrar rotas,  puxar pela mão, empurrar para situações que avaliamos como a melhor.

A vida, enfim nos diz: O CAMINHO DO OUTRO É DO OUTRO. Podemos estender a mão, apoiar, ajudar, mas cabe a cada pessoa  a escolha e suas consequências.

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MEU PÉ DE MAMÃO RENASCIDO

jul 7, 2011 por

Não tenho um jardim como gostaria. Apenas três canteiros espremidos contra o muro e, do outro lado, uns quatro metros quadrados de terra, com palmeiras ao centro, orquídeas e bromélias incrustadas e ao redor.

No primeiro canteiro, espadas de São Jorge, samambaias e um pé de limão que apesar de lançar raízes rentes ao muro, insiste na produção farta. Nos outros decidi plantar coisas comestíveis, como taiá e hortelã. Mas sempre quis conviver com uma árvore de muitas flores e de posse de um galho de buganvil, enterrei como mandam as senhorinhas de lugar. Comemorei as primeiras folhas, mas mal deram sinal de vida e morreram. Ao mesmo tempo havia jogado ao acaso algumas sementes de mamão. Elas brotaram formando amontoado de pés de mamão em meio as ervas daninhas que cresceram em tempo de muita chuva. Era preciso retirar as ervas, mas com elas acabei arrancando um pezinho de mamão. Menor que os demais, havia ficado escondido entre as folhas das plantas intrusas.

Puxa, que pena! Se tivesse prestado um pouquinho mais  de atenção!

meu pé de mamão renascido

Apressei o replantio. Cavei ao lado, cuidei pra que a cova envolvesse, sem entortar, a raiz pontiaguda e fina. Depois de assentar a terra joguei  um pouco de água e o amparei comuma estaca. Mas, horas depois as folhas arriaram e o caule debruçou sobre a madeira. Causa perdida. Mas já que estava perdida, podia experimentar sem culpa. Tomei um pouco de água mineral  e adicionei umas gotinhas da minha fórmula floral. Uma espécie de travessura de criança, mas que não conseguia deixar de fazer. Fiz e aguardei. Um dia, dois dias, três dias. O mamoeiro continuava arqueado e eu frustrada.  Deixei de acompanhar  até que de repente, passando os olhos pelo local descobri uma folhinha. Voltei a seguir a plantinha. Vi surgiu mais uma folha e depois outra e outra.

Conclui: se serviu pro mamoeiro, serve pro buganvil. Corri, arranquei o galho aparentemente seco, replantei  e reguei com gotas do floral. Enquanto aguardava, passei a mostrar aos visitantes meu pé de mamão renascido.

Lendo novos textos a respeito dos Florais de Bach descobri que não há nada de novo na minha experiência, mas continuo mostrando àqueles que me visitam  o meu pé de mamão renascido, agora acompanhado do buganvil, já com o segundo galhinho repleto de folhas.

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