Lá vem Maria

Desculpa

mar 19, 2016 por

Há poemas que nos falam a alma e nos acompanham anos ou décadas. Desculpa, de Maurício Távora está nesta minha lista. Não sei se o autor teve outros livros publicados. Conheço um pouco de sua história no teatro, em Curitiba, mais especificamente, no Guaira.

IMG_5477aDesculpa

Os loucos que me perdoem,
mas a distância é fundamental.

Não é, Poeta?

E se ela está num copo de uisque,
melhor, é mais legal,
com garantia constitucional.

 

Os loucos que me perdoem,
mas o mais-que-perfeito,
esse que não se arrisque
e evite sempre ficar por perto.
Que apague o olhar pretensamente esperto
e vá dar voltas na avenida,
de paletó e gravata.
E que não esqueça a graxa
no sapato, o perfeito nó em cada pé,
o sorriso de lata, a barba feita –
esquerda, direita, esquerda, direita!
Felicidades migo.
Desculpa não ir contigo,
mas acontece que não vais mais,
desde aquele dia que descobristes
o gostoso costume antigo
de ficar.
De ficar – como se diz? – de ficar bem.

Os loucos que me perdoem,
sinceramente,
se com eles não consigo ir também.

Maurício Távora
de VOAVIDA Poesias

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Obstinação

mar 15, 2016 por

IMG_5398 Vinho tinto,
torrada, manteiga,
ricota pra acompanhar.
A alma lambendo feridas,
que a unha insiste em sulcar.

Um brinde de fel e mel
nos resta pra degustar,
em louvor ao riso louco,
lançado pra suportar.

                                                                                         Vinho branco,
broa e queijo,
escabeche pra acompanhar.
A alma costurando o corte,
que o dente insiste em rasgar.

Um brinde de fel e mel   IMG_5392
nos resta pra degustar,
em louvor ao voo insano,
que alçamos pra nos salvar.

Água pura
flor de lótus,
pólen pra acompanhar.
A alma moldando cinzas,
que Fênix voltou a voar.

 

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ALÉM DA ALFORRIA

jan 20, 2016 por

 

gaivotanaIlha1A liberdade ultrapassa a alforria e creio, dela prescinde.
Não é na alforria que a libertação se faz, mas ao contrário. De posse da última pode-se cavar a primeira com os recursos que o caminho dispõe.
Liberdade é um estado que explode na alma e invade o corpo na forma de alguma coisa que palavra não define. Pode surgir num repente, junto com a decisão que revoga a emoção ou que retira o impedimento do mergulho. Pode eclodir na madrugada, quando  cinco planetas ficam alinhados, ou numa manhã de sol exuberante do verão.

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ELE QUEBROU MINHAS LENTES COLORIDAS

ago 9, 2015 por

IMG_8166.1Cresci no regime militar. Vivi a adolescência e a juventude numa ditadura. Não fui vítima direta, não esbarrei na opressão, não sofri as consequências imediatas do desvio do caminho. O regime pareceu não nos atingir, exceto quando o bom homem, prefeito da cidadezinha onde nasci, deixou o cargo e a família e fugiu para não ser preso. Ele era comunista e com o golpe os comunistas perdiam a condição de pessoas e se transmutaram em inimigos da pátria.
Semelhante a uma de forasteira desatenta transitei protegida pela feiura que atingia o país. Em 1970 segui os adultos do entorno e vibrei com a conquista do tetra. Vi os jogos, comemorei as vitórias e desfilei pelas ruas, tomada pelo sentimento de bem estar que o título oferecia.
Na época, por escolha de minha mãe, estudava em um colégio da rede Marista e lá aprendi o que a neutra ciência tem a oferecer. Atualmente diriam que era uma educação não ideologizada e algumas décadas atrás, talvez concordasse. Hoje, não mais. Sei que há uma ideologia impregnada nos conteúdos de versão única – a do vencedor ou do dominador, como me parece mais correto qualificar.
Tinha pouco mais de 18 anos quando o mundo das fórmulas neutras sofreu a primeira rachadura. Estava em Campo Grande, atual capital do Mato Grosso do Sul, hospedada com uma família que alugava dois dos quartos da casa. Aguardava o vestibular e no intervalo dos estudos exercia o direito inalienável de quem ainda está com um pé na adolescência: experimentar, ser inconsequente e incoerente, fazer coisas estúpidas e aprender com os erros.
Lá vivia um homem, funcionário público, respeitoso e reservado. Ele era psicólogo e eu, vestibulanda de psicologia. A coincidência nos permitia algumas conversas cordiais, mas não tinha lucidez suficiente para aproveitar a oportunidade e aprender com a simples troca de experiências.
Não lembro o nome do homem; não saberia calcular sua idade e se perguntei qualquer coisa sobre sua vida, ficou no esquecimento. Resgato uma situação, um único fato que veio à tona após assistir uma série de vídeos de entrevistas com adolescentes que foram ao ato de 15 de março  de 2015.
Não sei exatamente de que falávamos ou por que falávamos, mas lembro de meu arroubo de arrogância ou necessidade de afirmação que me fez declarar, com o mais completo desconhecimento de causa, que o governo militar era bom para o Brasil.
Antes que concluísse, a voz contundente e irada do homem, até então pacato e gentil, interrompeu : nunca fale daquilo você não sabe!
Percebo que, com o tempo, o ambiente onde estávamos virou esboço, mas as palavras do homem, não. Estão marcadas com tamanha clareza que quarenta anos parecem dias. Mesmo assim afirmo que não foi sua a fala que causou maior impacto. Trago, nítida e forte, a reação indignada . Sua energia e suas emoções me atingiram e invadiram. Um misto de dor desesperada e silenciosa, para a qual era preciso recrutar força e superação diárias. Dor, indignação, raiva e a obrigatoriedade de calar para sobreviver não foram, de imediato, assimilados por mim. Mas o baque das emoções quebrou meus escudos e abriu uma fresta. Alagarda constantemente, a ruptura permitiu a empatia e o entendimento que sustentam a solidariedade.
Depois da aprovação no vestibular não voltei a ver o homem, mas o lado obscuro da ditadura continuou a sujar minhas adoradas lentes coloridas. Já não era possível transitar incólume pelo mundo.
No ano seguinte Dom Evaristo Arns, Plínio Marcos e um jornalista de Brasília trouxeram retratos crús do país que eu acreditava ser uma pátria acolhedora e de infinitas oportunidades.
No inicio dos anos 80 nada restou de minhas lentes. A morte de uma pessoa querida, que após sair da prisão carregava consigo o pânico pelas torturas sofridas me obrigou, definitivamente, a conviver com o lado sombrio de meu país. Muitas vezes perdi a fé e a esperança. Tantas outras as reconstruí.
Quase quarenta anos depois de tropeçar pela primeira vez na realidade, vendo adolescentes pedindo intervenção militar, não os julguei. Lembrando de meu próprio universo de adolescente, de minha antiga necessidade de afirmação. Exercem seu inalienável direito de cometer ações equivocadas e aprender com elas. Mas não posso deixar de me indignar com aqueles que, com conhecimento de causa e excesso de recursos, abusam inescrupulosamente dessas necessidades, as usando para causar danos a todos nós. Muitos são mais que coniventes com a tortura e a morte de pessoas que lutavam, movidos pelo sonho de um país mais justo. Digo que são mais que coniventes, porque entendo que são cúmplices. Sabem o que fazem, conhecem as consequências, mas não reconhecem o outro como pessoa de igual direito. Manipulam, recrutam, levam milhares aos atos que beiram shows de estrelas ou carnaval fora de época. E, ao mesmo tempo, apoiam, sem escrúpulos, o envio dos mesmos adolescentes aos presídios de intolerável violência. Presídios que,  provavelmente, estão nas listas das futura privatizações.

Depois de ver os inúmeros vídeos de depoimentos, colhidos nas manifestações induzidas, desejei rever o homem que não me poupou da verdade. Gostaria de conhecer sua história e agradecer.

 

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TEM SOL LÁ FORA

jun 5, 2015 por

 

 

ilustração: Erly Ricci

“Tem sol lá fora. É preciso limpar o jardim e voltar a escrever!” Erly Ricci

Ainda atordoada com a partida do Erly, cumpro a primeira tarefa. Limpo e redefino as linhas do jardim enquanto tento ordenar sentimentos, emoções e pensamentos. Ao mesmo tempo um texto dá voltas sem ganhar formato definitivo. A brisa parece assoprar diferentes maneiras de abordar o mesmo tema e as variaveis não apontam para a coesão. Ainda não será escrito. Antes é preciso palavrear o que é dificil definir.

 A travessia de alguém muito próximo revolve consciente e inconsciente, desordena referencias e nos deixa sem rumo. As emoções oscilam, lembranças ganham novas formas, as relevancias sofrem alterações sem controle e tudo parece ficar à deriva.

Por um momento, que pode durar dias, semanas ou mais, é preciso cortar o contato com o mundo e cuidar da despedida. Dependendo do significado que a pessoa que partiu tem na nossa vida, a despedida não encerra o assunto. Abrem-se possibilidades e a medida que avançamos, novos entendimentos revestem as experiencias, principalmente quando enfrentamos situações similares àquelas que vivemos ao lado da pessoa, mas as experimentamos de outros angulos.

A partida de alguém tão próximo, quando ainda se tem planos em comum, primeiro desestrutura, para depois dar vasão ao alargamento da visão do outro e do mundo.

 Erly foi relatando seu processo de desligamento, mas eu, resistente, insisti em estender a mão. Ele aceitou a oferta apenas para se despedir. Buscou o resgate do que era essencial e declarou seus sentimentos, alguns em particular, outros em uma página de facebook. Consciente do próprio processo, fez recomendações, uma delas repetidas vezes.

 A travessia de cada pessoa é particular e a vivência de cada um que permanece por aqui também.

Tomo a frase sussurrada por ele para retratar sua partida:

 “A gente se faz refém, mas sempre dá para virar fotons.”

Erly se fez um aglomerado de fótons e partiu. Está livre. Eu busco o entendimento de sua presença em minha vida antes de seguir com a jornada.

     nosnos01IMG_20131019_173917       ErlyRicci

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PINTANDO PONTOS DE LUZ

maio 31, 2015 por

LUAA lua salta sobre nuvens como se fossem fundo. Auréolas, do branco ao ferrugem, a contornam.
Ela passeia entre nuvens ou as nuvens passam por ela?
Talvez lua e nuvens,  que de meu ponto de vista seguem em lenta leveza, movam-se com agilidade e destreza.
No trajeto, grumos escuros e pesados cerceiam o brilho. Mas grumos são passageiros, como passageiro é o momento de agora. Parecem sem movimento, mas o desarranjo das formas desconfirmam a impressão.
No chão úmido o zunzunar dos grilos oscila e persiste. Parecem alheios à lua, às nuvens e aos meus pensamentos.
Dos grumos salta a luz e a lua arredondada reaparece, fingindo sobrepor-se à camada branca. De novo, produz arcos do translúcido ao ferrugem e escorrega rumo à próxima barreira.
As barreiras é que se movem, diria um anjo torto, que um dia tropeçou e caiu. Sem preparo para o mundo dos expurgos andou atropelando e sendo atropelado, até que sumiu. Talvez esteja lá, entre tolhas brancas e felpudas, pintando pontos de luz.

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