Lá vem Maria

MARIA, VESTIDA DE PLENITUDE

mar 22, 2012 por

 

Entrou na avenida vestindo a fantasia que não sabia de onde vinha. Não titubeou. Progrediu rodopiando e sambando e cantando, como se da vida restasse apenas um pedaço de noite. Brilhou à luz dos refletores  e reluziu purpurinas até que a bateria cessasse. Caiu em negro vazio ao fim do longo percurso.

Antes de invadir avenida, trancou a porta, deixou a casa e andou à deriva. Andaria ainda, se o bloco dos redentos não a tivesse apanhado.

Antes  de sair sem rumo, abandonou  a cama e o quarto. Permaneceria no seu aconchego, se lá se sentisse aconchegada.

Antes de deixar  o leito não respondeu ao toque do homem, porque antes havia dito de sua solidão e vazio e não queria premio de consolação.

Antes de falar de si, rolou na cama, tomada de desejo.  Latentes, viviam beijos ardentes, caricias desmedidas e livres, risos francos e despudorados.

Antes, haviam outras noites, outros dias, outras esperas.

Depois, acordou num barracão desconhecido, de paredes imprecisas, cobertas de máscaras, disfarces e vestimentas disformes. Despiu-se das fantasias e do havia antes e antes do antes.  Plena de si, saiu,  a reinventar-se.

 

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ENTRE DEUS E DEUS

mar 16, 2012 por

Malena cresceu. Mas antes que chegasse ao tamanho da mulher de agora, deixou o pequeno sítio e rumou com a família para a pequena cidade. E de lá, antes que o corpo ganhasse as formas do corpo da mulher de agora, rumou com a família para a cidade de médio porte. Não seguiu com os seus para lugar algum. Com o corpo do tamanho e formatos de agora, rumou sozinha para uma cidade estonteante, complexa e contraditória. Deixou para trás o mundo de Malena e foi erguendo, dia à dia, derrota à derrota, vitória à vitória o mundo de Maria Helena.

Da janela do décimo quinto andar a mulher Maria Helena acompanha o sol poente. Antes atirou a bolsa na poltrona, jogou os sapatos num canto da sala, espichou o corpo numa grande almofada e exercitou a capacidade de silenciar pensamentos. Adormeceu, acordou com sede, apanhou água e parou frente a janela para o mundo insensato da metrópole. Ainda mantinha o silêncio premeditado, mas uma nuvens intrometida abordou o sol e se instalou como se fosse um colorido chapelão mexicano.

No redondo do sol a mulher pintou o rosto da mãe, Benedita Maria, sombreado pelo chapelão de uso diário.

Benedita era dona da terra que a família cultivava. Era dona do gado que ordenhava ainda com o sol nascente; dos porcos que alimentava logo depois da ordenha; das galinhas que dava de comer logo depois de alimentar os porcos e da horta que costumava limpar e regar antes do anoitecer. Era mãe dos moleques a quem dava ordens enquanto dispunha alimentos e auxiliava na partida para escola matinal em descoloridas bicicletas. E enquanto os meninos estudavam Benedita corria com a arrumação da casa e com a comida que distribuía sobre a chapa do fogão à lenha. Os olhos avançavam do fogão ao quintal e do quintal à lavoura, mas os ouvidos não desgrudavam do rádio que lhe trazia o mundo.

Depois de alimentar filhos e marido e de dar brilho as panelas e bacias, Benedita enfiava uma calça velha sob o vestido, camisa de manga longa sobre o mesmo, um chapelão sobre a cabeça miúda, apanhava a enxada e seguia para as leiras do cafezal. Os homens começavam a capinha da cabeceira do sitio e Benedita, das proximidades da casa, de onde podia seguir os passos de Malena. Mas antes da capina vespertina, dia após dia, Benedita parava na casa ao lado e repetia o chamamento: embora Tiana.

Em dia de muito sol Tiana não ia a lugar algum e respondia sem sair da sombra: vô não mulher. Mas Benedita insistia: se não ajudar seu marido vai faltar comida pros seus meninos, mulher! E Tiana replicava: se faltar Deus provém.

Benedita sabia que não adiantava insistir, mas nunca deixava de contrapor: Deus já deu braços, pernas e saúde, o o resto é com a gente. E seguia com a labuta, ressentida pela dificuldade com as letras. Se soubesse ler, provaria para Tiana que Deus havia dado às pessoas tudo que precisavam para dar conta da vida. Bastava pedir a graça das boas escolhas. Era o que sempre dizia ao marido e aos filhos, quando reclamava do mato que tomava a roça dos meeiros.

O chapelão de nuvem cobriu o sol e apagou o rosto de Benedita. Maria Helena voltou ao almofadão, mas não exercitou o silêncio. Repassou a infância vivida entre plantas e bichos, o inicio da adolescência entre ruas poeirentas da cidadela que atendia aos agricultores, a juventude confusa, atropelada pelas novidades que o mundo injetava na cidade média. Repassou atropelos, desvios, tempos que não deixaram saudades e outros, impregnados de boas lembranças. Deu atenção às crenças que atravessaram a vida e  entendeu que se nunca tomou para si o Deus provedor propagado por Tiana. Nalgum ponto de sua trajetória desacreditou daquele Deus separado do mundo e ordenador das vidas dos seres pensantes, que a mãe cultivava sem grande alarde. Nalguns trechos andou desnorteada, sem referências ou crenças, colecionando dúvidas e inseguranças. Mas, nalguma parte do caminho começou a cultivar um Deus que chamou Consciência Cósmica e com ele, impregnou seu  mundo.

 

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DESSEMELHANTES

mar 4, 2012 por

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Meu lado direito diverge e o esquerdo colide com o primeiro.

Minha cabeça diverge e o coração choca-se com os pensamentos.

Meu coração diverge e a cabeça contesta  a alma.

Um lado do cérebro diverge,  o outro opõe-se o mundo.”

Ajeitou o corpo na rede, mas não parou com a lenga-lenga. Não haveria de parar. Dezenas e dezenas de anos escamoteando  conflitos davam direito a repetição. Da admissão redentora não escapuliria, ainda  que a paz do sono sumisse pelas frestas dos olhos.

Meus olhos divergem e as imagens contradizem as crenças.”

No universo paralelo o dedo da mulher escorregou numa tecla e o computador disparou um som intermitente e chato. No mundo paralelo a tela, os chamarizes coloridos seduziam a navegante: os amigos do face, os intermináveis e repetitivos confrontos políticos, as campanhas sociais. Coisas de ontem com maquiagem nova.  A mulher do mundo ao lado não se despiria  nem se aninhasse ao  lado. A mulher do outro planeta vivia a guerra e ambos adversavam.

Retomou à lenga-lenga, adormeceu vazio de amor, acordou agastado.

Meu espírito viaja  em confronto e o corpo  choca-se com ele. “

Rolou o corpo, jogou as penas para o outro lado, deu com o céu de fim de tarde repleto de nuvens cinza.

No plano ao lado a mulher ainda clicava velozmente. No outro, o pássaro pousado na haste da bromélia, bebericava.

“O conflito vive em mulheres e homens. A sabedoria, nos pássaros e bromélias.”

Dobrou as pernas, se aninhou no côncavo da rede, desistiu dos enfrentamentos e  adormeceu em paz.

 

 

 

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Num trecho de estrada, pássaros festejavam

mar 1, 2012 por

 

O pé esquerdo ia torto. Fora a solução encontrada para minimizar a dor que tomava a sola do pé, atravessava os músculos do calcanhar e alcançavam o tornozelo. A bagagem, ainda que pequena,  pesava no braço cansado.  Revezava. Direito e esquerdo, esquerdo e direito e, às vezes, tentava deixar as alças numa das mãos. Mas as mãos reclamavam e o apetrecho voltava a perambular.

Caminhava rente a muros e cercas, aproveitando as sombras das árvores e arbustos que ousavam atravessá-los. A pele encharcada reclamava, a boca seca exigia mais água, e ela, em passos de tamanho e ritmo únicos seguia de cabeça vazia e alma em estranho silêncio.

Passos fortes e rápidos romperam a letargia. Viu a sombra masculina projetada e ouviu a voz rouca, contestando os especialistas em explosões solares, que as afirmavam inofensivas.

Não respondeu. Ninguém esperava resposta.

Imagens dos especialistas pulularam. Salas bem refrigeradas, computadores potentes e confortáveis carros, com ar condicionado e protetores para os vidros.

Não contestou.  Contestar consumiria energia e  precisava de cada fio que o corpo pudesse gerar.

Uma árvore sem cerca ou muro  e a tagarelice dos pássaros frearam  a marcha. Ergueu os olhos e encontrou um emaranhado de asas que abriam e fechavam, exibindo peitos coloridos. O riso esboçado e sincero, jogou no peito vazio, um veio de afeto. Rodeou o tronco vivo, tropeçou no pedaço de outro  com sinais de serrote e escolheu ficar por ali, dando folga ao corpo. Fez da maleta, travesseiro e do tronco arriado, esteio par o corpo.  Os olhos cederam ao peso do dia, mas os ouvidos seguiram a cantoria repetitiva, até que cenas da infância despontaram sem travas,  trazendo  saudade do tempo em que ,sob goiabeiras, ameixeiras e amoreiras, pedia respostas ao vento e as recebia sem custo.

Cochilou, mas não demorou muito para voltar ao presente e entender que os sonhos perdidos não seriam resgatados.  Era imprescindível tecer outros, realizáveis.

 

 

 

 

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APARTHEID

jan 27, 2012 por

Entre brancos e azuis ele compunha lagos e montanhas. Paisagens do continente dos flocos com suas infinitas ondulações de variados tamanhos. Pareceu-lhe possível mergulhar no denso tapete de nuvens e ser envolvido e sustentado por ele. Denso, macio, reconfortante, como deveria ser a cama dos anjos.
O serviço de bordo pontuou a inconsistência da sensação: senhores passageiros atravessamos uma zona de turbulência e os cintos devem ser mantidos afivelados.
Acima, o sol em céu azul brilhante. Azul celeste que em nada lembrava o anil vislumbrado desde o solo em dias de poucas nuvens. Àquela hora a cidade que havia deixado certamente não era tocada pelo sol. Ao partir aquele pedaço de mundo cinzento havia ficado sob chuva ininterrupta. Mas, fraca ou forte, densa ou mansa, longa ou curta, a chuva nada podia contra a cisão forjada nos séculos de enfrentamento. Bastou colocar os pés naquele chão para que a opressão o impregnasse. Às vezes experimentava sensações de risco a percorrer-lhe o corpo. Outras, de degradação a rondar a vida. E enquanto lá estava, para superar a invasão e manter-se integro, recorreu às racionalizações.
Por força da tarefa a ser cumprida andou pelo bairro que designou senzala recém alforriada. Viveu a indignação que contaminava o ar circundante, a submissão raivosa, o enfrentamento medroso tomando poros e vísceras. Eram os anos de escravatura extrapolando o tempo, a imiscuir-se na opressão vigente e ambos coibindo risos, esperança, fé e afetos.
Fincou pé na resolução da incumbência e atravessou ruelas de vidas ofegantes, as venceu e se infiltrou nas avenidas de hotéis estrelados, prédios bem aparelhados, vitrines seguramente equipadas. Respirou o excessivo cuidado, a distanciamento comedido, a reserva de cada olhar. Traçou linhas que delineavam um e outro bairro. Ao último denominou casa grande.
Na primeira página de apontamentos improvisados, deixou  a inscrição: primeiros dias após a abolição. Seguiu descrevendo as impressões do corpo, que o intelecto transpunha para o verbo: senhores escravocratas e seus descendentes continuaram em seus bons lugares. Todos os outros foram forçados a permanecer na senzala, inclusive feitores e auxiliares. Aos alforriados nada foi oferecido, exceto a retirada do chicote e do pelourinho. Aos demais, os instrumentos de sempre, que os capacita ao domínio de uma nova ordem com mesmo o mesmo principio do “a ferro e a fogo”. Em meio à guerra muda, há quem tente construir uma vida possível. No conforto da casa grande, todos desconfiam de todos. Mais desconfiam dos diferentes que dos iguais. E de um ou outro lado, a vida segue estancada.
A zona de turbulência foi vencida, bebidas circularam pelo corredor da nave e ele continuou a compor lagos e montanhas no crespo das nuvens. Talvez, se guardasse na memória a beleza daquele imenso tapete de algodão doce, esquecesse os rostos da desesperança e lembrasse apenas do velho taxista que o ajudou no trânsito entre senzala e casa grande, disparando sorrisos gentis e conversas amigáveis .
O rapaz de tez morena, sobrancelhas e olhos escuros e fortes percorreu o corredor do avião recolhendo latinhas, enquanto a mulher quase loira retirava copos e pacotes plásticos. Ao redor da casa grande e senzala a vida seguia,  misturando o que as pessoas separam. E para não esquecer, tomou os apontamentos amassados e rabiscou:  flores nascem em antigas usinas nucleares e se alimentam de seus resíduos.

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