Lá vem Maria

Num trecho de estrada, pássaros festejavam

mar 1, 2012 por

 

O pé esquerdo ia torto. Fora a solução encontrada para minimizar a dor que tomava a sola do pé, atravessava os músculos do calcanhar e alcançavam o tornozelo. A bagagem, ainda que pequena,  pesava no braço cansado.  Revezava. Direito e esquerdo, esquerdo e direito e, às vezes, tentava deixar as alças numa das mãos. Mas as mãos reclamavam e o apetrecho voltava a perambular.

Caminhava rente a muros e cercas, aproveitando as sombras das árvores e arbustos que ousavam atravessá-los. A pele encharcada reclamava, a boca seca exigia mais água, e ela, em passos de tamanho e ritmo únicos seguia de cabeça vazia e alma em estranho silêncio.

Passos fortes e rápidos romperam a letargia. Viu a sombra masculina projetada e ouviu a voz rouca, contestando os especialistas em explosões solares, que as afirmavam inofensivas.

Não respondeu. Ninguém esperava resposta.

Imagens dos especialistas pulularam. Salas bem refrigeradas, computadores potentes e confortáveis carros, com ar condicionado e protetores para os vidros.

Não contestou.  Contestar consumiria energia e  precisava de cada fio que o corpo pudesse gerar.

Uma árvore sem cerca ou muro  e a tagarelice dos pássaros frearam  a marcha. Ergueu os olhos e encontrou um emaranhado de asas que abriam e fechavam, exibindo peitos coloridos. O riso esboçado e sincero, jogou no peito vazio, um veio de afeto. Rodeou o tronco vivo, tropeçou no pedaço de outro  com sinais de serrote e escolheu ficar por ali, dando folga ao corpo. Fez da maleta, travesseiro e do tronco arriado, esteio par o corpo.  Os olhos cederam ao peso do dia, mas os ouvidos seguiram a cantoria repetitiva, até que cenas da infância despontaram sem travas,  trazendo  saudade do tempo em que ,sob goiabeiras, ameixeiras e amoreiras, pedia respostas ao vento e as recebia sem custo.

Cochilou, mas não demorou muito para voltar ao presente e entender que os sonhos perdidos não seriam resgatados.  Era imprescindível tecer outros, realizáveis.

 

 

 

 

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TRILOGIA DA FENIX: O DIA DA RAIVA SEM CULPA

nov 19, 2011 por

Era um sentimento mudo. Tomava o corpo desde os poros do couro cabeludo às unhas dos pés e a paralisava. Não cabiam definições, frases, palavras. Não cabia nem mesmo um ponto de interrogação ou exclamação. O bloqueio tomou sua capacidade de pensar palavras, de pensar ações, de pensar…
Transferindo peso do corpo para o batente da porta, prendeu os olhos no homem esguio que ria e ria de uma bobagem qualquer dita pela mulher que à frente, tagarelava.

Na passagem, o garçom esticou o braço com a bandeja e, no automatismo, ela apanhou uma taça.
Não faria nada, não diria nada, não demonstraria nada, pois não era de sua natureza deixar-se conhecer. Continuaria imobilizada, mas superior à deslealdade de seu opositor.

Na passagem o garçom esticou o braço com a bandeja e, no automatismo, ela trocou a taça.
Não permitiria que soubessem da natureza de seus sentimentos. Emudeceu as emoções. Continuou a olhar o homem elegante que bebia e falava para três ou quatro pessoas afáveis e risonhas.

Na passagem o garçom esticou o braço com a bandeja e, no automatismo devolveu a taça vazia e apanhou outra, que transbordava.

Era um sentimento torpe. Retesava os músculos, contraía tendões, deixava o peito opresso. Não devia fazer parte de sua natureza, mas era impossível negá-lo. Olhava o homem que antes provocara ruptura em sua muralha, forjando afeto e contra vontade se apropriava da palavra dita pelo corpo: raiva.

Na passagem o garçom evitou esticar o braço com a bandeja, mas ela o chamou e trocou a taça vazia por outra, repleta do líquido transparente e borbulhante.
Vivia em equilíbrio, sem grandes tropeços ou emoções. E para que serviam as emoções, senão para quebrar a serenidade? Mas o homem de gestos graciosos, que do outro lado do salão franzia a testa ao vê-la grudada ao batente, apareceu na estética de sua propriedade, a esperou depois do expediente, insistiu que o acompanhasse ao bistrô visinho, ligou, mandou flores, provocou sua entrega, freqüentou seu círculo de amigos, galgou posições sociais, traiu sua confiança, provocou frustração e a fez dona de intensa raiva.

O garçom evitou aproximar-se, mas ela deixou o recosto, foi até a bandeja e mais uma vez trocou a taça vazia por outra, repleta de champanhe. Continuou andando, atravessou o salão sem desgrudar os olhos do individuo alinhado e sedutor que caminhava ao seu encontro.

Era um sentimento lícito, definitivamente apropriado, completamente pertinente. Mas não quis carregar a raiva consigo e frente àquele que antes a fizera sonhar, a expressou sem travas. Ainda o ouviu considerar sua possível embriaguez, mas não deu trela à opinião. Depositou a taça na bandeja, andou rumo à porta, parou, voltou o corpo e declarou: hoje é meu dia de embriagues sem pudor e da raiva sem culpa.
Ciente que dava conta das frustrações, antes de dormir fez votos de viver novos riscos, mas também firmou propósito de cuidar para que seus sentimentos não servissem à manipulação.

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