Lá vem Maria

Obstinação

mar 15, 2016 por

IMG_5398 Vinho tinto,
torrada, manteiga,
ricota pra acompanhar.
A alma lambendo feridas,
que a unha insiste em sulcar.

Um brinde de fel e mel
nos resta pra degustar,
em louvor ao riso louco,
lançado pra suportar.

                                                                                         Vinho branco,
broa e queijo,
escabeche pra acompanhar.
A alma costurando o corte,
que o dente insiste em rasgar.

Um brinde de fel e mel   IMG_5392
nos resta pra degustar,
em louvor ao voo insano,
que alçamos pra nos salvar.

Água pura
flor de lótus,
pólen pra acompanhar.
A alma moldando cinzas,
que Fênix voltou a voar.

 

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O Grande Barco

mar 7, 2016 por

barconevA pele tostada e as mexas claras no cabelo avermelhado eram marcas indiscutíveis dos dias passados ao sol. As manobras diárias com as velas mantinham os músculos visíveis e fortes. Em sua meia idade, Miro não chegava a ser um homem bonito, ainda que esbanjasse energia.
Joah, dono de traços refinados e cabelos negros, herdados da mãe, ganhava a mesma energia e vigor. A semelhança retratava a aliança forjada pelo mar.
Viajavam sem discutir motivos. Joah gostava do mar, dos portos e praias em que atracavam e, sobretudo, amava o pai. Da vida pregressa de Miro, sabia pouco. Após um naufrágio, foi recolhido pelos pescadores de Sant’ana que aceitaram sua história, usufruíram suas habilidades com as madeiras e ele entregaram a construção e reparo de seus barcos. Mais tarde tornou-se parte de antiga família de pescadores, casando com Eny. Teve com ela um filho e pretendia outros, mas Eny morreu, o deixando com os olhos voltados para o mar.
O balanço provocado pelas ondas, os pés em terras desconhecidas, os olhos em paisagens inóspitas eram desejos indomados que aumentavam enquanto o filho crescia. A necessidade de partir fez-se incontestável. Com a ajuda de Joah construiu a embarcação dos sonhos. Transpôs para a madeira a imagem do Grande Barco, do qual fora arrancado ainda jovem, por estranha tempestade. Concluída a tarefa, partiram sem delimitar tempo ou direção. Seguiam ancorando, zarpando, percorrendo rotas às vezes traçadas pela necessidade de obter suprimento ou reparo e outras, definidas pelo desejo inexplicável que invadia Miro.
“Seguimos o sol”, dizia Joah quando interpelado por curiosos. O descompromisso era simulado já que Miro gastava horas, às vezes dias, vasculhando cartas marítimas ou marcando linhas diversas. O último dos destinos também foi traçado pela força do ímpeto. Um mapa numa tenda onde faziam uma refeição encantou o navegante. A ilha de Jatah o chamava e Miro sentia necessidade premente de atendê-la.
Atracaram em Jatah como quem atraca no vazio. Assim sentia Joah ao admirar a larga e interminável faixa de areia quase prata que embainhava o mar calmo e repetitivo. Nenhuma vegetação. Nada de cores diversas, nada de pescadores, nenhum murmuro. Apenas calmaria e um incessante zumbido.
O sol ia e voltava enquanto Miro, da proa ou da areia, olhava a imensidão azul. Joah o deixava. Mergulhando, pescando ou cozinhando, aguardava. No terceiro dia viu o pai riscar nova rota. Compreendeu que partiriam.
O pequeno barco venceu ilhas de indescritíveis contornos, pontos rochosos que surgiam do nada e bancos de corais desnudados pela água límpida. Depois do espetáculo irreal, ilhas de pura areia em mar de calmaria, pintado com cores de arco íris.
“Navegar é transpor paisagens”, registrava Joah. E as cores foram transpostas. Desapareceram repentinamente levando consigo o brilho do sol. À frente, apenas mar e céu acinzentados.
“Navegar é transpor paisagens. Basta navegar, navegar, navegar”, continuava Joah, esperando o surgimento de novas cores. Mas antes que o cinza fosse transposto, uma forte bruma os envolveu. E antes que pudessem recorrer aos aparelhos, a tempestade os tomou, alardeando perigo.
– Recolha as velas! – gritava Miro.
– Amarre a corda. Prenda no mastro!- continuava.
“Navegar é contínua superação”, confabulava Joah, enquanto às cegas, obedecia às ordens do pai. Superariam a tempestade, acreditava. Mas as ondas eram maiores que o barco e o tomaram. Invadiram o convés, arrancaram Miro do leme, jogaram Joah contra o mastro. Uma onda menor, outra maior e outras tantas mais! Pai e filho não tinham tempo para manobras. Entre ondas surgiu uma embarcação à deriva. A inevitável colisão os lançou ao mar.
Já não havia ondas ferozes, só cinzenta calmaria, quando se descobriram resgatados e acolhidos em estranho convés. Miro, ainda atabalhoado, viu desfilar, um a um, do mais velho ao mais novo, antigos companheiros. Em oposição ao filho, não desejou discernimento. Reencontrara o Grande Barco, aquele do qual fora lançado, tal qual era em tempos idos, e isso era mais que poderia desejar ou imaginar.
Efusivo, buscou a cada um para saudações e abraços. Mas os abraços não aconteceram. Miro insistia, mas de imediato recebeu instrumentos para que ajudasse na tarefa comum a todos – retirar, incansavelmente, a água que invadia a embarcação.
Joah que a tudo assistia, recorreu ao pai, propondo aliança. Mas Miro, tomado pela grande tarefa, ordenou que fizesse o mesmo e que não negligenciasse. Assustado, o rapaz fugiu para a proa. Acuado olhava o mar, as pessoas em seus movimentos infinitamente repetidos e a paisagem, nunca alterada. Perplexo, constatou que o percurso não era mais que um grande círculo, regularmente traçado, sem ponto de partida ou chegada. De imediato se arvorou em desviante, batendo com insistência contra o leme, que parecia travado! O leme e tantos outros instrumentos. Todos emperrados.
Parecia não existir saída, mas atentando para detalhes, o rapaz descobriu entre apetrechos jogados ao chão, estranhos imãs. Tomou um punhado deles e passou a examinar suas estranhas formas. Pareciam formar um quebra cabeça disforme e tridimensional. Enquanto juntava partes, percebeu leve movimento nos ponteiros de alguns instrumentos. Decidiu adicionar essas estranhas peças aos comandos. Percebeu um pequeno movimento na grande rota e festejou. Ainda adicionava partes à estrutura quando, tomado por imensa onda, foi lançado ao mar. O grito estridente foi reconhecido por Miro e a dor o sacudiu Miro. Sem hesitar, o homem se atirou às ondas, chamando pelo filho até a exaustão.
Recolhidos pelos pescadores, reencontraram-se em Sant’ana.

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Marlene de Oliveira: a arte resgatando a vida

mar 1, 2016 por

marlened“ Ainda não fiz meu autorretrato, mas já estou me vendo por dentro. Como isso é magnífico, lindo demais
Foi simples para me descobrir: através da dança. Uma coreografia que quase não é conhecida no meio artístico, por preconceito da sociedade. Dança que exige toda sensualidade do corpo em movimentos encantados, expressão leve. É a única dança que não pode ter o toque dos pares. Eu me vejo livre como uma ave pairando entre montanhas: a dança cigana…”
Valle dos Sonhos – um passado real
Marlene de Oliveira

Afirmo, sem ter dúvidas, que a falta de vínculos ou a ausência total de afeto promove a morte tanto quando a desnutrição.

Quando olhos cuidadosos não acariciam a criança, quando mãos seguras não são estendidas, quando não há cuidados disponíveis, o universo vira escuridão e o fio da vida pode ser cortado. Mas há quem sobreviva em famílias que não acolhem. Nestes casos pode-se verificar que algum amparo veio de fora, de outros olhos, de pessoas que não pertencem ao núcleo familiar. As vezes são fios intermitentes de luz, capazes que alimentar a força. Quando esses fios deixam de existir, a escuridão triunfa. marlene

Este poderia ser o resumo da vida de Marlene de Oliveira, mas ela mereceu um feixe adicional de luz, decidiu continuar, superar, contar e pintar sua história e renascer na dança.

Neste texto não repetiremos todo relato da trajetória de Marlene, que pode ser conhecido com as palavras da protagonista, no livro Valle dos Sonhos – Um passado real, editado pela J. M.Editora. Também pode ser vivenciado numa incrível sequencia de telas pintadas a óleo, que ocupam cinco paredes da casa que ela construiu com suas mãos. Na galeria abaixo, mostramos algumas.

Vamos partir do ponto em que, depois de arrastar um carrinho pelas ruas catando o sustento seu e das filhas, de trabalhar na faxina de hospitais, doente, sem trabalho e com rejeição da família, Marlene sucumbiu. E este foi ponto de seu renascimento. Ela recebeu e aceitou o olhar cuidadoso de um médico, acatou o apoio e tornou-se seu próprio amparo.

Foi preciso que um olhar amoroso, aqui entendido como de amor universal, a impulsionasse. Foi preciso que usasse a palavra – verbal e escrita – para expurgar a dor. Foi preciso pintar em fundo branco para expelir a escuridão que carregava consigo e só então pode ser a dona de si mesma.

A ruptura foi marcada pela quebra da lei do silêncio, imposto pela família, ao qual ela se submeteu. Falou, escreveu e pintou sua trajetória, até que pudesse deixá-la no passado.

É neste ponto que nasce a bailarina de dança cigana.

Depois de aprender a dançar e de sua história ser conhecida, ela passou a fazer apresentações e a participar de eventos como reuniões, conferencias e encontros, com o propósito de impulsionar o resgate de outras mulheres vitimas de violência. Participa com sua dança, relatando sua experiência de vida, apresentando seu livro ou expondo suas pinturas. Trabalho voluntário que pode sr constatado nos inúmeros álbuns postados na sua página no Facebook e da qual nos autorizou a reprodução de algumas.

Marlene participa para dizer a outras mulheres que é possível assumir as rédeas, quebrar o circuito de violência a que estão submetidas e ter uma vida digna. Ela parece repetir: eu consegui, você também pode.

Marlene é exemplo. É modelo a espelhar e, exatamente por isso faz-se necessário considerar um aspecto relevante na sua história. A primeira opressão relatada tem origem na própria mãe. O primeiro modelo desse padrão ambíguo, que mescla sentimentos de proteção e desamparo com violência, foi daquela que se deixava sugar pelos homens da família, tratava com violência física e emocional, a filha de mesmo sexo e permitia que recebesse maus tratos dos irmão. Este padrão de relação repete-se ao longo da vida, até que viver deixasse de ter sentido. Este foi o tipo de vínculo com o qual ela precisou romper para ir em frente.

A constatação não é uma acusação e não exime qualquer outro membro. Antes, aponta para necessidade nos pensarmos como mães e mulheres. É também um sinal de que é necessário nos colocarmos atuantes na reconstrução dos valores vigentes, na formação dos padrões de relacionamento de nossos filhos e filhas, na valorização, sem mitificação, de nossa função na família e na sociedade. É preciso educar sem deixar que esqueçam que uma mãe é uma pessoa, não uma heroína de poderes ilimitados. É uma mulher a ser respeitada e não o sexo fraco a ser desconsiderado. Assim ensinamos nossos filhos a respeitar outras mulheres e nossas filhas a não se deixar agredir.

marlene*

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Para quem quer saber mais sobre a guerreira Marlene de Oliveira, disponibilizamos os links:

http://www.bonde.com.br/?id_bonde=1-31–56-20140809

http://andes-ufsc.org.br/vidas-ameacadas-machismo-que-fere-e-mata/

http://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/colunistas/jose-carlos-fernandes/a-paixao-de-marlene-de-oliveira-e0hl1lgdqosm273llp2k40716

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Escritibas na charmosa São Francisco

fev 24, 2016 por

No centro de Curitiba, entre as ruas Barão de Serro Azul e Presidente Faria existe uma ruazinha antiga, charmosa e colorida. Antes era lembrada por acolher o Restaurante Mikado, que neste ano, para tristeza de milhares de pessoas, deixou de existir. Muito antes do fechamento deste ponto de boa comida e muitos encontros, a rua estreita, de poucas quadras e calçada com pedras, tinha deixado de receber atenção. Mas o movimento dos ciclistas que, com trabalho voluntário, transformou um terreno abandonado no agradável espaço de convivência reacendeu o interesse. Quando ,em 22 de setembro de 2014, o espaço foi oficializado como Praça de Bolso do Ciclista, campanhas que pedindo a revitalização da rua histórica se espalhavam. Ao mesmo tempo passou a ser tornou palco de eventos culturais ao a livre.
Independente das ações governamentais ou não, a São Francisco tem lugares interessantes. Não disponibilizaremos um lista, nem qualquer avaliação dos serviços. Em foco, apenas um pouco da arte encontrada em uma única quadra, registrada em 18/02/2016. Café, pizzaria e brechó são algumas das opções que mostramos na galeria abaixo.
A partir de fevereiro deste ano surgiu no local, uma nova feira de arte e artesanato. Todas as quintas feiras sem chuva, no final do dia ou começo da noite, é possível escolher um objeto cerâmico, uma pequena planta, discos, camisetas, calçados, desenhos ou livros. E nós, os Escritibas, estamos lá, com nossos livros de poesia e prosa. No local é possível conversar com autores, comprar livros e ainda, levar a obra autografada. Veja na galeira os autores presentes no dia 18 de fevereiro: Junior França, Alvaro Posselt, Geraldo Magela, Adegmar José da Silva,  Silzi Mossato e Paulo Roberto de Jesus.  Apareça!

 

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GiKlaus em sonho e cena

fev 22, 2016 por

 

“Acho que sonhar sonho é o mesmo que ter asas” (Praça da Amizade)

GK10

Pode-se dizer que para ser ator, na essência da palavra, é necessário talento, além de uma série de atributos intrínsecos. Concordo com a premissa, mas o trabalho contínuo e a superação são essenciais ao oficio. Do meu ponto de vista foi desta junção do intrínseco com exercício cotidiano que nasceu a Cia GiKlaus de Teatro.
O batismo da GiKlaus aconteceu no dia 17 de janeiro de 2016, com a primeira apresentação do primeiro espetáculo para convidados. Um mês depois, na manhã de quarta feira, 17 de fevereiro de 2016, eles estrearam na cena curitibana, com aplausos calorosos. O palco foi a rua XV de Novembro, próximo à praça Osório.
Klaus Faryj e Giselle Xavier Miranda não são atores iniciantes. A companhia resulta de anos de experiência, em grande parte dedicados à Arte Espirita. A amizade e o trabalho conjunto, desenvolvido com seriedade e empenho, certamente influenciam no resultado. O espetáculo encanta crianças e faz com que adultos viajem à infância.
Praça da Amizade foi adaptado do texto de Chico Xavier, editado pela CEU, que através de Francisco Galves, cedeu os direitos. Ao adaptar, Klaus deu ao mesmo tratamento adequado ao Teatro de Rua. A dramaturgia tem como referencia a cultura rural e circense e mostra uma belíssima sequencia de cenas em dois diferentes contextos.
Dois atores assumem diversos personagens, marcados por adereços ou pelo uso de pequenos objetos cênicos. As artes circenses são marcadas por piruetas, malabares e requebros.
Edmundo Cezar assina a direção. Em Curitiba desde 2011, trouxe para o espetáculo sua experiência inciada em 1986 no teatro amador, no subúrbio do Rio de Janeiro, ampliada no Curso Livre de Teatro e de Licenciatura em Artes Cênicas da UFBa. Ator, diretor e iluminador recebeu o prêmio Bahia Aplaude de Revelação do Ano de 1996. Desde 1998 dedica-se ao teatro com conteúdo espírita, dirigindo espetáculos pela Cia Espírita de Artes Cênicas de Salvador, Bahia.
O espetáculo fará parte do Festival de Teatro de Curitiba. Confira datas, horários e locais após sequencia de fotos.

Festival de Teatro de Curitiba

Data                   Horário     Local

23/03/2016         11:00      Ruínas São Francisco

24/03/2016         09:00      Largo da Ordem – Bebedouro

25/03/2016         16:00      Ruínas São Francisco

26/03/2016         18:00      Praça Generoso Marques

 

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Julia

fev 18, 2016 por

dsc_0173 (cópia)

Noite de homenagens e Júlia era a estrela maior. Os anos longe dos palcos não a afastavam das lentes nem dos holofotes. Ela já não desejava lentes ou holofotes e quando a repórter perguntou se gostaria de ser mais jovem, alargou os cantos da boca, franziu os olhos e balançou a cabeça negativamente. A moça insistiu e a mulher, concisa e calma reforçou: nenhum minuto mais jovem.
Logo atrás, o homem que ela não podia ver, gritou: algum momento em sua vida ao qual queira retornar?
Júlia fez pausa, girou o corpo, procurou o rosto do indagador e disparou: nenhum. Ele teimou: não tem saudades do palco? Depois do categórico não, a mulher sorriu, movimentou os ombros e justificou: o palco já foi experimentado à exaustão. Deixemos os refletores aos que despontam.
Mais tarde, frente ao espelho, com os ombros arcados e o queixo apontado para o pescoço, suspirava. As fantasias não seguia porta à dentro. Havia cuidado para que invadissem a vida de quem não habitava as barras e as sapatilhas de ponta, mas já não as cultivava na intimidade.

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O Barqueiro

fev 13, 2016 por

barqueiro03Do barqueiro ninguém sabia o nome, se é que o tinha. Todos o conheciam, mas ignoravam sua história. Contavam que um dia, num ano distante, instalara ali sua barca e iniciara sua atividade. Desde então,  mostrava-se  incansável. Começava o trabalho ainda com estrelas no céu e seguia ao ritmo do rio até que o crepúsculo restaurasse o brilho das mesmas. Repetia o rito ininterruptamente, sem obedecer a quaisquer regras  que indicassem descansos regulares. Somente os percalços naturais o desviavam. Chuva torrencial e ventos fortes levavam-no ao ócio. A natureza, dizia, deve ser sempre respeitada. O enfrentamento nunca favorece o desafiante.
Os moradores da região aceitavam suas regras e usufruíam do beneficio oferecido. Com o tempo desistiram das perguntas e se algum desavisado insistia, as respostas eram sempre evasivas. Mas quando um dos embarcados desatava a falar de si, encontrava bons ouvidos. Bastava que alguém, atrapalhado com a vida,  aproveitasse a travessia para desabafar que o barqueiro sorria, franzindo o canto dos olhos e da boca. Depois, com voz mansa e monótona, contava uma de suas histórias com desfechos que, costumeiramente, causavam surpresa ao interlocutor. Histórias coloridas e belas,  talvez fruto de uma imaginação excessivamente fértil ou de uma vida intensa. Mas alguns de seus ditos eram repetidos com frequência. Melhor a dor que nada, dizia afável com o ouvinte. Cuide de sua dor com carinho, ela o faz vivo, completava em algumas ocasiões.

Às vezes, quando algum sofredor resistia, o homem franzia os olhos, estendia largamente a boca e dizia: Ser infeliz é uma escolha fácil. Difícil é estar satisfeito.
E assim, desafiando os interlocutores ou apenas sendo solidário, o barqueiro fazia  da travessia  sua vida. Ouvia dramas, pesadelos, histórias mórbidas e felizes; repetia suas frases e pronunciava conselhos. Como quem não espera chegar a qualquer outro destino, ia e vinha, aproveitando a companhia das estrelas, águas e nuvens.
Macon, poeta jovem, cheio de brilho e furor, chegou à barca numa tarde de chuva intensa e forte correnteza. O rio largo e sereno estava alterado. Passava feroz carregando folhas, galhos ou qualquer coisa que tocasse a água barrenta. Chegou apressado, querendo atravessar. De imediato interpelou o barqueiro, que sob um pequeno abrigo, aparentava contemplação.
– A barca está parada?
– Sim. É perigoso atravessar com o temporal.
– Espera longa?
– Talvez. Depende da força da chuva. Para quem tem pressa, melhor seguir rio acima.
– Na estrada barrenta?
– A estrada é ruim e tem ponte, pequena e arriscada. Mas com cuidado chega-se ao outro lado em hora e meia.
O poeta, inquieto, busca resolver a questão a seu modo. E seu modo não incluía enfrentar longo trecho de lama e caminhar sob a chuva forte. Além de que, desconhecia o trajeto.
– Sempre que chove a barca para?
– Se é chuva forte…
– Mesmo quando é passageira?
– Paro enquanto durar.
– E se chover durante uma semana?
– Espero.
– E as pessoas que precisam atravessar?
– Usam a estrada. Demora, mas é mais seguro.
– Nunca atravessou com chuva?
– Uma vez. Um menino ferido perdia sangue. Arrisquei. Travessia difícil, mas deu certo.
Volumosas baforadas tiradas com prazer do charuto escuro intercalavam as falas do homem. O rapaz levava as mãos aos cabelos escuros e grossos, as colocava nos bolsos da capa que cobria o corpo, estalava os dedos e retomava as perguntas. Sem delongas, o barqueiro tomou a rédeas da conversação.
– Compromisso urgente na vila?
– Não fico na vila. Retorno para a cidade.
– Alguém esperando?
O poeta gaguejou. Quis retrucar, dizer que não era da conta do homem. Respondeu a contragosto.
– O editor me aguarda. Tenho um bom livro…
– Huuum, – resmungou, franzindo a testa e voltando ao charuto.

O rapaz olhava o céu, o rio, a mata ao redor e suspirava. A urgência suplantava a razão e um matuto desconhecido apontava o desatino. Desconhecido e detestável. Mas não podia furtar-se ao fato de que com frequência agia assim.

O homem calou-se, dando atenção ao o charuto e Macon cuidou de tirar a capa molhada. Pendurou o apetrecho num pequeno gancho,  acomodou-se num tronco que servia de banco e lá ficou, olhando o rio, o céu, a mata e o matuto e suas baforadas lentas. O cilindro de tabaco descansava entre dedos, depois ia à boca que soltava vagarosamente a fumaça que que o poeta ia seguindo, seguindo, seguindo. Esqueceu a pressa e descuidado, observava o estranho grisalho, rosto com rugas que mais pareciam marcas de riso que de velhice, porte ereto e mãos finas e longas. Homem distinto dos caboclos da região.  Segurava o objeto com elegância rara, vista apenas em alguns salões da cidade.
– Um charuto?- perguntou o barqueiro. O poeta aceitou o oferecimento.
– Vicio?
– Posso viver sem eles.
– Por que não para?
– Não tenho motivos. E uma boa baforada aguça a meditação.
– Meditar é verbo desconhecido nessas paragens.
– Comum é matutar. Ainda carrego marcas.
–  Chegou há pouco tempo na região?
O homem riu com estardalhaço. Depois, corrigindo a atitude, respondeu com cortesia.
– Sequer lembro o ano cheguei.
– Saudades de antes?
– Dos lugares onde estive, guardo imagens enfumaçadas, mais nada.
– Mas os costumes permaneceram?
O homem sorriu. A leveza com que  expressões engavetadas vinham à tona provocava diversão e incômodo. Longe ia o tempo das discussões ardentes, da necessidade de expor a perplexidade frente ao mundo ilógico e injusto e da curiosidade incontida. O moço parecia recrutar o que havia doado ao rio.
– Então vai esperar – arriscou o homem.
– Acha que seguindo pela estrada economizo tempo?
– Tempo? Não. Não há como. O tempo será sempre o mesmo, tenha você pressa ou não. Cada coisa a seu tempo e cada uma dura o que tiver que durar. Nem mais nem menos.

-Não é bem assim – retrucou o poeta.

– É o que imaginamos. Mas o tempo desconhece pressa ou lentidão. Ele é tudo e não existe. Tudo e nada, simultaneamente.
Macon desconfiava. O estranho parecia desconhecer a luta travada fora dali, dia após dia.

Não saberia da angústia de cada vitória? Não conheceria o esplendor de cada ganho? Tão longe das cidades não haveria de sonhar com sua medonha loucura. Mas não desejava uma discussão. Preferiu o silêncio ao embate.
O barqueiro atirou uma pedra à poça d’água e apontando para os círculos que alargavam sucessivamente, indagou:
– Conhece o infinito?
O rapaz o olhou, esquivo. O outro,  ignorando a reação, continuou.
– Quem vive o cotidiano das cidades, aprende a igualar o inigualável. Tempo e o dinheiro, prazer e gloria, vida e fama. Pois ali está. Quer vasculhar o tempo? É só sonhar. Nele pode-se ir e vir. Soltar-se e voar. Seguir e voltar e novamente ir. Nada de alucinante ou amedrontador. Apenas círculos, simultâneos, sucessivos e constantes.
Para o poeta os círculos estavam adjetivados: devaneios de um solitário que caberiam na poesia, mas não na guerra editorial ou na briga pelo espaço na vitrine das livrarias.
– Acha loucura?
– Sequer sabe de onde venho.
– Pura ilusão. O corpo conta o que vivemos, o que pensamos, o que sonhamos.
Noutra situação a irritação irromperia em Macon. Mas ali, frente ao rio de forte correnteza e água barrenta, ainda que o  barqueiro o desnudasse, parecia  incontestável. Quis pensar um xingamento, mas desistiu. Voltou ao silêncio. Atirando pedregulhos ao rio, fugiu do olhar invasivo. Para que enveredar por caminhos obscuros? Estava bem, desenrolando seus fios e construindo  sua teia. Para que deixar que um matuto o desafiasse? Para que duvidar dos rumos da vida? Atendia às pressões do editor e acumulava vitórias. Gostava do brilho das noites de autógrafos, das entrevistas e matérias nos jornais. Estava nas listas de melhores do ano, as vendas cresciam e ele investia naquilo que acreditava ser tudo que desejava.
Cansado dos pedregulhos, o poeta afrouxou a guarda, prendendo os olhos no outro. Inalterado, o homem continuava apanhando pequenas pedras e as atirando, uma a uma, na mesma poça.
– Feche os olhos. Experimente os círculos – sugeriu em voz monótona.
Ainda que relutante, Macon obedeceu. O que simples seriação de círculos poderia provocar?
Olhou fixamente para a poça, seguiu um e outro círculo,  depois fechou os olhos. No escuro das pálpebras cerradas os círculos continuaram. Nasciam, alargavam, sumiam. Novamente nasciam, cresciam e sumiam. O poeta quis pensar concretudes do cotidiano, mas os círculos  entremeavam imagens e continuavam a  nascer, alargar e morrer.
Novo pensamento, nova interferência, novos círculos repentinamente nascendo, infinitamente crescendo. O volume da chuva aumentava.  O ruído ininterrupto, repetitivo, relaxante, incitava à  entrega.  O percurso de cada pingo, da nuvem ao solo, da nuvem ao rio, da nuvem a poça d’água. Minúsculas ondas sendo formadas no torno. Nascendo, crescendo, deformando. Outros pingos, outras ondas,  circulares, pequenas ou  enormes, misturando-se a outras, minúsculas e novas. Ondas que se formavam rapidamente. Ondas que cresciam lentamente.  Velocidade nula.  Tempo desfigurado.
O barulho de um trovão interrompeu a viagem e o poeta recobrou o controle. A  chuva caia com  fúria, o rio empurrava amontoados de cascalho e, ao lado, o estranho imóvel, sem abrir os olhos.
– Assustado com o devaneio?
O rapaz não respondeu. Fitou-o firmemente, mas não o definiu. Era cético, descrente em bruxos ou feiticeiros, mas intrigado, não  ignorava a viagem.
O barqueiro, abrindo os olhos, sorriu. Não contou nenhuma história, não proferiu nenhuma frase. Apenas sorriu e retomou o charuto. Macon o seguiu. Nada foi dito. Era só chuva torrencial e, depois,  amena. O vento ganhando leveza e o céu, luminosidade.
– A chuva está parando. Talvez possamos atravessar – apressou o rapaz.
– Veja a correnteza. Seria imprudente.
– Fosse prudente, não estaria aqui!
A voz não foi mais que sussurro e o barqueiro não contestou. Macon retomava a própria trajetória. Não tinha buscado aquelas paragens pelo simples prazer de estar ali. Planejava  transformar a experimentação em mais uma obra, em mais uma criação e talvez, em mais uma vitória. Havia traçado um roteiro semelhante a um círculo e estava para completá-lo. Matas virgens, plantações, criações de animais, e, principalmente, as pessoas dos lugarejos, que os poetas da metrópole não alcançavam. O jeito de viver daquela gente cabocla as conversas de armazéns e botequins ou o vai e vem contínuo e lento de quem não lia eram matérias brutas. A lapidaria e logo iriam colorir páginas de livros, jornais ou revistas. Faltava pouco para dividir a obra  com o editor de faro infalível. Mas o rio e seu barqueiro atravancavam o caminho.
– O que parece empecilho, pode  dádiva – voltou a interferir o homem.
– Dádiva?
– A conquista inesperada. O salto que ignorava e que acontece à revelia..
– Um enigma?
– Uma descoberta.
A estiagem trouxe a revoada de pássaros no céu que clareava. O barqueiro, quase inerte,  seguiu o bando.
– Belos pássaros. Basta que a chuva os deixe, ganham o céu. Sábios pássaros. Sempre sabem como e quando ir e vir.
Macon o ouviu sem reagir. O homem retornou aos pássaros e a inércia. O rapaz pensou em seguir pela estrada, mas desistiu. Tomou o charuto. Entre uma tragada e outra, seguia os círculos de fumaça.  Entre círculos, os pássaros voavam. Outros círculos, outros pássaros e os pensamentos submergiram. O poeta esqueceu o charuto. Segui as curvas das asas em suas trajetórias longas e livres. O ar inflou o peito, o corpo reagiu com leveza. Os membros ganharam suaves inclinações. Os músculos perderam o tônus, dando lugar ao voo. Cerrou os olhos e  viveu o pássaro. Do alto, sobrevoou o rio e a mata. Subiu mais e mais. Voltou, sobrevoou a si mesmo e desejando romper, chamou: Vem conhecer o infinito! Vem! É só desejo, sonho, entrega. Vem que é só o infinito, que ata e desata, transcende e amarra. Loucos e lúcidos, sensatos e disformes. Vem que é só dominar o ar, ir e voltar. Basta arriscar.
Macon arriscou e descobriu o desejo de se jogar nas águas do rio, de emergir buscando o ar para os pulmões e retornar ao céu. Descobriu o desejo quase incontrolável de entregar-se ao amor sem fazer perguntas. O limite entre entregar-se e perder-se era tênue e,  amedrontado, abriu os olhos e evitou as aves e o rio. Mais uma vez ocorreu-lhe caminhar rio acima. Talvez fosse mais prudente distanciar-se do lugar e do estranho.
– Se for agora vai chegar ao anoitecer – disse-lhe o barqueiro, ainda imóvel.
– Não posso permanecer aqui
– Tenho acomodações para dois. Amanhã já não terá correnteza e poderemos atravessar ainda com o alvorecer.
– Como pode saber?
– Já não há nuvens ao sul, de onde sopra o vento.
– Se o vento virar?
– Não há indícios.
O rapaz cedeu. Tomou a capa e a pequena bagagem e foi com o anfitrião pela trilha que desembocou num caminho bem cuidado, ladeado por flores e pedras. Serpentearam morro acima até o topo, onde uma pequena cabana de madeira bruta, plantada sobre meia dúzia de troncos grossos e irregulares, quebrava a paisagem. Num único vão, cortado por um pequeno balcão que marcava a cozinha,  havia um fogão à lenha, uma prateleira, poucas louças e panelas. Da varanda, no entanto, avistava-se o rio e o céu, atrelados à mata verde.
O poeta aproveitou o banho de água aquecida no fogão à lenha, experimentou o chá quente e comeu torradas com mel e queijo. Esqueceu dos temores, usufruiu da quietude singular.
– Difícil compreender como um homem urbano pode viver aqui.
O rapaz esperava resposta, mas o homem sequer balbuciou silaba. Soltou vagarosamente a fumaça presa nos pulmões.
– Não é daqui, nem de lugar semelhante.
A constatação não deixou brechas para fuga, então respondeu com singeleza.
– É certo que não sou homem dessas paragens. Não trabalho a terra, não interpelo o tempo pra que interrompa a chuva, nada armazeno para mim ou para outros. Mas também não desejo seu mundo – respondeu com singeleza.
– E o mundo dos lavradores?
– Para viver como eles é necessário mais força que a que me foi concedida. Então sou barqueiro e não produtor ou vaqueiro.
– Não tem desejo de voltar para as cidades?
– Para sobreviver em suas cidades necessito de agressividade que já  não disponho.
Macon dissecaria o homem, mas ele  encerrou o assunto com uma  resposta lenta e preguiçosa.
– Já não penso no lugar de onde vim nem naqueles por onde passei. Já não tenho passado que me oriente nem desejo que me conduza. É certo que fui jovem. Fui afoito e presunçoso. Pensava dominar  a verdade. Mas a vida, tinhosa como é,  fez-me solto em seu balanço.
– Esse balanço…
– Se quer saber dele, é só sentir vento e ouvir o rio.
Ao silêncio imposto, o poeta não  transgrediu. Foi  passear com o vento entre cheiros de flor e mato. O barulho do rio, semelhante à cantiga velha e gasta, carregou-o para a correnteza. Foi ter com as águas.  A impetuosidade cedeu à entrega e  a curiosidade ao desejo. Viajou entre pedras, impulsionado pela correnteza. Foi resgatado pelo pássaro e levado ao céu.  Mergulhou, submergindo, para em seguida, voltar ao ar e novamente ao rio. Ao retornar não soube do tempo. Sem dizer palavra, buscou a cama já preparada e  adormeceu.  Foi acordado pelo barqueiro no alvorecer e o seguiu rumo à travessia.
Sobre as águas do rio calmo, reflexos tímidos do sol acompanharam os navegantes. Na outra margem, já em terra firme, o poeta olhou o companheiro e sorriu. Transformado, deixava os olhos falassem de sua emoção. Era hora de despedida e o barqueiro atreveu-se a perguntar-lhe o nome.
– Macon – respondeu-lhe o rapaz. No rosto do barqueiro apontou palidez descabida, mas ele a ignorou e fez de um aceno sua despedida. Antes de partir o barqueiro ainda cravou os olhos no poeta. Curto instante no qual viu seus próprios olhos, seus afetos sua história. Voltou a sorrir, saudando a vida, seu balanço e suas artimanhas.

De uma das margens Macon, o poeta, partia, certo de que olharia a vida com olhos de pássaro. Da outra, Macon, o barqueiro, seguia rumo a cabana vazia. Nos tempos transcorridos ninguém ouviu suas histórias ou seus ditos. O sorriso nos cantos dos olhos e da boca não foi visto em lugar algum. Não voltou ao rio. Diziam que adoecera. Ele, no entanto, espreitava o jogo da vida e seu delicioso risco. Quieto e cauteloso, revivia as sessões de autógrafos, o rosto nos jornais, as recepções, as pessoas e antigas emoções.
A lua cheia retornava quando um novo barqueiro tomou o lugar. Do antigo, soube-se apenas que havia partido. Há quem acredite que o dono da travessia enveredou por antigos caminhos a procura de um jovem de nome igual ao seu, pretendendo desvendar-lhe o feitiço.

 

 

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