Lá vem Maria

O Barqueiro

fev 13, 2016 por

barqueiro03Do barqueiro ninguém sabia o nome, se é que o tinha. Todos o conheciam, mas ignoravam sua história. Contavam que um dia, num ano distante, instalara ali sua barca e iniciara sua atividade. Desde então,  mostrava-se  incansável. Começava o trabalho ainda com estrelas no céu e seguia ao ritmo do rio até que o crepúsculo restaurasse o brilho das mesmas. Repetia o rito ininterruptamente, sem obedecer a quaisquer regras  que indicassem descansos regulares. Somente os percalços naturais o desviavam. Chuva torrencial e ventos fortes levavam-no ao ócio. A natureza, dizia, deve ser sempre respeitada. O enfrentamento nunca favorece o desafiante.
Os moradores da região aceitavam suas regras e usufruíam do beneficio oferecido. Com o tempo desistiram das perguntas e se algum desavisado insistia, as respostas eram sempre evasivas. Mas quando um dos embarcados desatava a falar de si, encontrava bons ouvidos. Bastava que alguém, atrapalhado com a vida,  aproveitasse a travessia para desabafar que o barqueiro sorria, franzindo o canto dos olhos e da boca. Depois, com voz mansa e monótona, contava uma de suas histórias com desfechos que, costumeiramente, causavam surpresa ao interlocutor. Histórias coloridas e belas,  talvez fruto de uma imaginação excessivamente fértil ou de uma vida intensa. Mas alguns de seus ditos eram repetidos com frequência. Melhor a dor que nada, dizia afável com o ouvinte. Cuide de sua dor com carinho, ela o faz vivo, completava em algumas ocasiões.

Às vezes, quando algum sofredor resistia, o homem franzia os olhos, estendia largamente a boca e dizia: Ser infeliz é uma escolha fácil. Difícil é estar satisfeito.
E assim, desafiando os interlocutores ou apenas sendo solidário, o barqueiro fazia  da travessia  sua vida. Ouvia dramas, pesadelos, histórias mórbidas e felizes; repetia suas frases e pronunciava conselhos. Como quem não espera chegar a qualquer outro destino, ia e vinha, aproveitando a companhia das estrelas, águas e nuvens.
Macon, poeta jovem, cheio de brilho e furor, chegou à barca numa tarde de chuva intensa e forte correnteza. O rio largo e sereno estava alterado. Passava feroz carregando folhas, galhos ou qualquer coisa que tocasse a água barrenta. Chegou apressado, querendo atravessar. De imediato interpelou o barqueiro, que sob um pequeno abrigo, aparentava contemplação.
– A barca está parada?
– Sim. É perigoso atravessar com o temporal.
– Espera longa?
– Talvez. Depende da força da chuva. Para quem tem pressa, melhor seguir rio acima.
– Na estrada barrenta?
– A estrada é ruim e tem ponte, pequena e arriscada. Mas com cuidado chega-se ao outro lado em hora e meia.
O poeta, inquieto, busca resolver a questão a seu modo. E seu modo não incluía enfrentar longo trecho de lama e caminhar sob a chuva forte. Além de que, desconhecia o trajeto.
– Sempre que chove a barca para?
– Se é chuva forte…
– Mesmo quando é passageira?
– Paro enquanto durar.
– E se chover durante uma semana?
– Espero.
– E as pessoas que precisam atravessar?
– Usam a estrada. Demora, mas é mais seguro.
– Nunca atravessou com chuva?
– Uma vez. Um menino ferido perdia sangue. Arrisquei. Travessia difícil, mas deu certo.
Volumosas baforadas tiradas com prazer do charuto escuro intercalavam as falas do homem. O rapaz levava as mãos aos cabelos escuros e grossos, as colocava nos bolsos da capa que cobria o corpo, estalava os dedos e retomava as perguntas. Sem delongas, o barqueiro tomou a rédeas da conversação.
– Compromisso urgente na vila?
– Não fico na vila. Retorno para a cidade.
– Alguém esperando?
O poeta gaguejou. Quis retrucar, dizer que não era da conta do homem. Respondeu a contragosto.
– O editor me aguarda. Tenho um bom livro…
– Huuum, – resmungou, franzindo a testa e voltando ao charuto.

O rapaz olhava o céu, o rio, a mata ao redor e suspirava. A urgência suplantava a razão e um matuto desconhecido apontava o desatino. Desconhecido e detestável. Mas não podia furtar-se ao fato de que com frequência agia assim.

O homem calou-se, dando atenção ao o charuto e Macon cuidou de tirar a capa molhada. Pendurou o apetrecho num pequeno gancho,  acomodou-se num tronco que servia de banco e lá ficou, olhando o rio, o céu, a mata e o matuto e suas baforadas lentas. O cilindro de tabaco descansava entre dedos, depois ia à boca que soltava vagarosamente a fumaça que que o poeta ia seguindo, seguindo, seguindo. Esqueceu a pressa e descuidado, observava o estranho grisalho, rosto com rugas que mais pareciam marcas de riso que de velhice, porte ereto e mãos finas e longas. Homem distinto dos caboclos da região.  Segurava o objeto com elegância rara, vista apenas em alguns salões da cidade.
– Um charuto?- perguntou o barqueiro. O poeta aceitou o oferecimento.
– Vicio?
– Posso viver sem eles.
– Por que não para?
– Não tenho motivos. E uma boa baforada aguça a meditação.
– Meditar é verbo desconhecido nessas paragens.
– Comum é matutar. Ainda carrego marcas.
–  Chegou há pouco tempo na região?
O homem riu com estardalhaço. Depois, corrigindo a atitude, respondeu com cortesia.
– Sequer lembro o ano cheguei.
– Saudades de antes?
– Dos lugares onde estive, guardo imagens enfumaçadas, mais nada.
– Mas os costumes permaneceram?
O homem sorriu. A leveza com que  expressões engavetadas vinham à tona provocava diversão e incômodo. Longe ia o tempo das discussões ardentes, da necessidade de expor a perplexidade frente ao mundo ilógico e injusto e da curiosidade incontida. O moço parecia recrutar o que havia doado ao rio.
– Então vai esperar – arriscou o homem.
– Acha que seguindo pela estrada economizo tempo?
– Tempo? Não. Não há como. O tempo será sempre o mesmo, tenha você pressa ou não. Cada coisa a seu tempo e cada uma dura o que tiver que durar. Nem mais nem menos.

-Não é bem assim – retrucou o poeta.

– É o que imaginamos. Mas o tempo desconhece pressa ou lentidão. Ele é tudo e não existe. Tudo e nada, simultaneamente.
Macon desconfiava. O estranho parecia desconhecer a luta travada fora dali, dia após dia.

Não saberia da angústia de cada vitória? Não conheceria o esplendor de cada ganho? Tão longe das cidades não haveria de sonhar com sua medonha loucura. Mas não desejava uma discussão. Preferiu o silêncio ao embate.
O barqueiro atirou uma pedra à poça d’água e apontando para os círculos que alargavam sucessivamente, indagou:
– Conhece o infinito?
O rapaz o olhou, esquivo. O outro,  ignorando a reação, continuou.
– Quem vive o cotidiano das cidades, aprende a igualar o inigualável. Tempo e o dinheiro, prazer e gloria, vida e fama. Pois ali está. Quer vasculhar o tempo? É só sonhar. Nele pode-se ir e vir. Soltar-se e voar. Seguir e voltar e novamente ir. Nada de alucinante ou amedrontador. Apenas círculos, simultâneos, sucessivos e constantes.
Para o poeta os círculos estavam adjetivados: devaneios de um solitário que caberiam na poesia, mas não na guerra editorial ou na briga pelo espaço na vitrine das livrarias.
– Acha loucura?
– Sequer sabe de onde venho.
– Pura ilusão. O corpo conta o que vivemos, o que pensamos, o que sonhamos.
Noutra situação a irritação irromperia em Macon. Mas ali, frente ao rio de forte correnteza e água barrenta, ainda que o  barqueiro o desnudasse, parecia  incontestável. Quis pensar um xingamento, mas desistiu. Voltou ao silêncio. Atirando pedregulhos ao rio, fugiu do olhar invasivo. Para que enveredar por caminhos obscuros? Estava bem, desenrolando seus fios e construindo  sua teia. Para que deixar que um matuto o desafiasse? Para que duvidar dos rumos da vida? Atendia às pressões do editor e acumulava vitórias. Gostava do brilho das noites de autógrafos, das entrevistas e matérias nos jornais. Estava nas listas de melhores do ano, as vendas cresciam e ele investia naquilo que acreditava ser tudo que desejava.
Cansado dos pedregulhos, o poeta afrouxou a guarda, prendendo os olhos no outro. Inalterado, o homem continuava apanhando pequenas pedras e as atirando, uma a uma, na mesma poça.
– Feche os olhos. Experimente os círculos – sugeriu em voz monótona.
Ainda que relutante, Macon obedeceu. O que simples seriação de círculos poderia provocar?
Olhou fixamente para a poça, seguiu um e outro círculo,  depois fechou os olhos. No escuro das pálpebras cerradas os círculos continuaram. Nasciam, alargavam, sumiam. Novamente nasciam, cresciam e sumiam. O poeta quis pensar concretudes do cotidiano, mas os círculos  entremeavam imagens e continuavam a  nascer, alargar e morrer.
Novo pensamento, nova interferência, novos círculos repentinamente nascendo, infinitamente crescendo. O volume da chuva aumentava.  O ruído ininterrupto, repetitivo, relaxante, incitava à  entrega.  O percurso de cada pingo, da nuvem ao solo, da nuvem ao rio, da nuvem a poça d’água. Minúsculas ondas sendo formadas no torno. Nascendo, crescendo, deformando. Outros pingos, outras ondas,  circulares, pequenas ou  enormes, misturando-se a outras, minúsculas e novas. Ondas que se formavam rapidamente. Ondas que cresciam lentamente.  Velocidade nula.  Tempo desfigurado.
O barulho de um trovão interrompeu a viagem e o poeta recobrou o controle. A  chuva caia com  fúria, o rio empurrava amontoados de cascalho e, ao lado, o estranho imóvel, sem abrir os olhos.
– Assustado com o devaneio?
O rapaz não respondeu. Fitou-o firmemente, mas não o definiu. Era cético, descrente em bruxos ou feiticeiros, mas intrigado, não  ignorava a viagem.
O barqueiro, abrindo os olhos, sorriu. Não contou nenhuma história, não proferiu nenhuma frase. Apenas sorriu e retomou o charuto. Macon o seguiu. Nada foi dito. Era só chuva torrencial e, depois,  amena. O vento ganhando leveza e o céu, luminosidade.
– A chuva está parando. Talvez possamos atravessar – apressou o rapaz.
– Veja a correnteza. Seria imprudente.
– Fosse prudente, não estaria aqui!
A voz não foi mais que sussurro e o barqueiro não contestou. Macon retomava a própria trajetória. Não tinha buscado aquelas paragens pelo simples prazer de estar ali. Planejava  transformar a experimentação em mais uma obra, em mais uma criação e talvez, em mais uma vitória. Havia traçado um roteiro semelhante a um círculo e estava para completá-lo. Matas virgens, plantações, criações de animais, e, principalmente, as pessoas dos lugarejos, que os poetas da metrópole não alcançavam. O jeito de viver daquela gente cabocla as conversas de armazéns e botequins ou o vai e vem contínuo e lento de quem não lia eram matérias brutas. A lapidaria e logo iriam colorir páginas de livros, jornais ou revistas. Faltava pouco para dividir a obra  com o editor de faro infalível. Mas o rio e seu barqueiro atravancavam o caminho.
– O que parece empecilho, pode  dádiva – voltou a interferir o homem.
– Dádiva?
– A conquista inesperada. O salto que ignorava e que acontece à revelia..
– Um enigma?
– Uma descoberta.
A estiagem trouxe a revoada de pássaros no céu que clareava. O barqueiro, quase inerte,  seguiu o bando.
– Belos pássaros. Basta que a chuva os deixe, ganham o céu. Sábios pássaros. Sempre sabem como e quando ir e vir.
Macon o ouviu sem reagir. O homem retornou aos pássaros e a inércia. O rapaz pensou em seguir pela estrada, mas desistiu. Tomou o charuto. Entre uma tragada e outra, seguia os círculos de fumaça.  Entre círculos, os pássaros voavam. Outros círculos, outros pássaros e os pensamentos submergiram. O poeta esqueceu o charuto. Segui as curvas das asas em suas trajetórias longas e livres. O ar inflou o peito, o corpo reagiu com leveza. Os membros ganharam suaves inclinações. Os músculos perderam o tônus, dando lugar ao voo. Cerrou os olhos e  viveu o pássaro. Do alto, sobrevoou o rio e a mata. Subiu mais e mais. Voltou, sobrevoou a si mesmo e desejando romper, chamou: Vem conhecer o infinito! Vem! É só desejo, sonho, entrega. Vem que é só o infinito, que ata e desata, transcende e amarra. Loucos e lúcidos, sensatos e disformes. Vem que é só dominar o ar, ir e voltar. Basta arriscar.
Macon arriscou e descobriu o desejo de se jogar nas águas do rio, de emergir buscando o ar para os pulmões e retornar ao céu. Descobriu o desejo quase incontrolável de entregar-se ao amor sem fazer perguntas. O limite entre entregar-se e perder-se era tênue e,  amedrontado, abriu os olhos e evitou as aves e o rio. Mais uma vez ocorreu-lhe caminhar rio acima. Talvez fosse mais prudente distanciar-se do lugar e do estranho.
– Se for agora vai chegar ao anoitecer – disse-lhe o barqueiro, ainda imóvel.
– Não posso permanecer aqui
– Tenho acomodações para dois. Amanhã já não terá correnteza e poderemos atravessar ainda com o alvorecer.
– Como pode saber?
– Já não há nuvens ao sul, de onde sopra o vento.
– Se o vento virar?
– Não há indícios.
O rapaz cedeu. Tomou a capa e a pequena bagagem e foi com o anfitrião pela trilha que desembocou num caminho bem cuidado, ladeado por flores e pedras. Serpentearam morro acima até o topo, onde uma pequena cabana de madeira bruta, plantada sobre meia dúzia de troncos grossos e irregulares, quebrava a paisagem. Num único vão, cortado por um pequeno balcão que marcava a cozinha,  havia um fogão à lenha, uma prateleira, poucas louças e panelas. Da varanda, no entanto, avistava-se o rio e o céu, atrelados à mata verde.
O poeta aproveitou o banho de água aquecida no fogão à lenha, experimentou o chá quente e comeu torradas com mel e queijo. Esqueceu dos temores, usufruiu da quietude singular.
– Difícil compreender como um homem urbano pode viver aqui.
O rapaz esperava resposta, mas o homem sequer balbuciou silaba. Soltou vagarosamente a fumaça presa nos pulmões.
– Não é daqui, nem de lugar semelhante.
A constatação não deixou brechas para fuga, então respondeu com singeleza.
– É certo que não sou homem dessas paragens. Não trabalho a terra, não interpelo o tempo pra que interrompa a chuva, nada armazeno para mim ou para outros. Mas também não desejo seu mundo – respondeu com singeleza.
– E o mundo dos lavradores?
– Para viver como eles é necessário mais força que a que me foi concedida. Então sou barqueiro e não produtor ou vaqueiro.
– Não tem desejo de voltar para as cidades?
– Para sobreviver em suas cidades necessito de agressividade que já  não disponho.
Macon dissecaria o homem, mas ele  encerrou o assunto com uma  resposta lenta e preguiçosa.
– Já não penso no lugar de onde vim nem naqueles por onde passei. Já não tenho passado que me oriente nem desejo que me conduza. É certo que fui jovem. Fui afoito e presunçoso. Pensava dominar  a verdade. Mas a vida, tinhosa como é,  fez-me solto em seu balanço.
– Esse balanço…
– Se quer saber dele, é só sentir vento e ouvir o rio.
Ao silêncio imposto, o poeta não  transgrediu. Foi  passear com o vento entre cheiros de flor e mato. O barulho do rio, semelhante à cantiga velha e gasta, carregou-o para a correnteza. Foi ter com as águas.  A impetuosidade cedeu à entrega e  a curiosidade ao desejo. Viajou entre pedras, impulsionado pela correnteza. Foi resgatado pelo pássaro e levado ao céu.  Mergulhou, submergindo, para em seguida, voltar ao ar e novamente ao rio. Ao retornar não soube do tempo. Sem dizer palavra, buscou a cama já preparada e  adormeceu.  Foi acordado pelo barqueiro no alvorecer e o seguiu rumo à travessia.
Sobre as águas do rio calmo, reflexos tímidos do sol acompanharam os navegantes. Na outra margem, já em terra firme, o poeta olhou o companheiro e sorriu. Transformado, deixava os olhos falassem de sua emoção. Era hora de despedida e o barqueiro atreveu-se a perguntar-lhe o nome.
– Macon – respondeu-lhe o rapaz. No rosto do barqueiro apontou palidez descabida, mas ele a ignorou e fez de um aceno sua despedida. Antes de partir o barqueiro ainda cravou os olhos no poeta. Curto instante no qual viu seus próprios olhos, seus afetos sua história. Voltou a sorrir, saudando a vida, seu balanço e suas artimanhas.

De uma das margens Macon, o poeta, partia, certo de que olharia a vida com olhos de pássaro. Da outra, Macon, o barqueiro, seguia rumo a cabana vazia. Nos tempos transcorridos ninguém ouviu suas histórias ou seus ditos. O sorriso nos cantos dos olhos e da boca não foi visto em lugar algum. Não voltou ao rio. Diziam que adoecera. Ele, no entanto, espreitava o jogo da vida e seu delicioso risco. Quieto e cauteloso, revivia as sessões de autógrafos, o rosto nos jornais, as recepções, as pessoas e antigas emoções.
A lua cheia retornava quando um novo barqueiro tomou o lugar. Do antigo, soube-se apenas que havia partido. Há quem acredite que o dono da travessia enveredou por antigos caminhos a procura de um jovem de nome igual ao seu, pretendendo desvendar-lhe o feitiço.

 

 

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