Lá vem Maria

Julia

fev 18, 2016 por

dsc_0173 (cópia)

Noite de homenagens e Júlia era a estrela maior. Os anos longe dos palcos não a afastavam das lentes nem dos holofotes. Ela já não desejava lentes ou holofotes e quando a repórter perguntou se gostaria de ser mais jovem, alargou os cantos da boca, franziu os olhos e balançou a cabeça negativamente. A moça insistiu e a mulher, concisa e calma reforçou: nenhum minuto mais jovem.
Logo atrás, o homem que ela não podia ver, gritou: algum momento em sua vida ao qual queira retornar?
Júlia fez pausa, girou o corpo, procurou o rosto do indagador e disparou: nenhum. Ele teimou: não tem saudades do palco? Depois do categórico não, a mulher sorriu, movimentou os ombros e justificou: o palco já foi experimentado à exaustão. Deixemos os refletores aos que despontam.
Mais tarde, frente ao espelho, com os ombros arcados e o queixo apontado para o pescoço, suspirava. As fantasias não seguia porta à dentro. Havia cuidado para que invadissem a vida de quem não habitava as barras e as sapatilhas de ponta, mas já não as cultivava na intimidade.


Vida! Estranha e retilínea vida, de sabor único! Afinal, a quem obedecia?
O pensamento soou melancólico, mas  não foi inibido. Seguiu indagando. O que  impedia que as emoções explodissem? Que e a inundassem? Mais tarde haveria de entregar-se ao homem escolhido;  mais tarde viajaria;  mais tarde iria  correr os riscos próprios da vida. E a vida ficou repleta de dilação! Beijos não beijados, emoções anuladas, a espera de que?
Os desejos  não partiam. Estancavam e ficavam à espreita. Eram tantos que a amedrontavam. No corpo abandonado sobre a cadeira de lona,  os anseios ardiam,  comprimindo a garganta e o peito . A estrela, desmoronada, chorava a solidão de cada dia, as emoções abortadas e a determinação descabida.
Aliviada, estendeu o tronco e fechou os olhos. Buscou o rapaz de olhos negros e cabelos escorregadios. Emergente de passado impreciso, ele não tinha traços definidos. Impreciso também era o gosto de seu beijo e o calor de seu corpo. Marcas calcadas em outros tempos e que a perseguiam.
Uma levada de brisa  invadiu o quarto e Júlia abandonou os devaneios. Deixou a cadeira, andou pelo apartamento,  retornou ao quarto e sorriu para o espelho. Planejou exorcizar os fantasmas e  iniciou lenta preparação. O corpo rijo e esguio mergulhou em água morna e depois foi cuidadosamente vestido. O rosto maduro ganhou nova  maquiagem. O brilho  dos olhos e dos lábios foram realçados e os cabelos, soltos e escovados. Concluiu o rito calçando  sapatos macios. Sem olhar para trás, deixou o quarto,  o prédio, a rua e seguiu. Chegou ao baile como quem chega à glória. Aspirou a atmosfera como se fosse ar puro.   Deixou que a música a tomasse, que a lucidez esvaísse e que o controle virasse penumbra. E na penumbra teve quinze anos e com quinze anos dançou freneticamente. Em seu desprendimento teve dezoito anos, encontrou o namorado por quem suspirava e o enlaçou lentamente. Teve vinte e dois anos e trocou a disciplina pela viagem inconsequente. Conheceu pessoas e lugares, experimentou situações e riscos, foi incoerente e radical, meiga e egoísta, respeitosa e inescrupulosa. Cuidou-se e retornou. Teve vinte e cinco anos e aceitou o compromisso com o homem que esperava por ela. Foi companheira e amante, compartilhou seus dias, sofreu e foi feliz. Teve trinta anos e com eles,  os filhos  que amou e ninou, amamentou e deixou que  sugassem a vida que fervilhava. Enfim, teve quarenta anos, vestiu-se de branco, foi ao baile, deixou explodir a vida que guardava enrustida e desfaleceu abraçada ao desconhecido que a beijava. Quando acordou ao seu lado, amanhecia. Olhou o companheiro com carinho e sorriu.

Deixou a cama, abriu a cortina e viu o sol imenso e dourado, subindo. Depois  olhou a pintura borrada, refletida no espelho, e afagou  as marcas que o tempo havia deixado.  Sentindo que os olhos do homem a acariciavam, voltou à cama. Tocou-o levemente e deixou que ele a tocasse. O prazer correu solto e Júlia entregou-se com a calma de quem sabe que só resta viver.

Posts Relacionados

Tags

Compartilhar

1 comentário

  1. Eni Gonçalves

    Narrativa intimista,poeticamente perfeita.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *