Lá vem Maria

BOA PARTILHA

jun 24, 2011 por

 

Cresceu à mercê dos desabafos maternos: vida dura a de mulher; um inferno; trabalho que nunca cessa, descanso que nunca é suficiente; vida de escrava; mais uma encarnação, só se for pra ser homem.

Cresceu à mercê do desencanto, mais cultivando a esperança de fazer diferente.
Cresceu, partiu, namorou, colecionou relações confusas e depois de um acordo de boa partilha, casou.

 

 

Um dia a mãe adoeceu e a receberam para que fosse cuidada. Numa manhã como tantas, enquanto ele guardava o pão e ela entulhava a louça na pia a mãe sussurrou ao ouvido: ele não se importa com essa bagunça? Deu com os ombros antes de revidar: ele tomou do mesmo café.
Noutra manhã, ele tomava banho, ela ajeitava o cabelo e da porta do quarto, novo fio de voz materna: seu marido não briga vendo essa cama desarrumada? Ela suspirou e encarou a mulher antes de responder: ele dorme na mesma cama, sai e chega no mesmo horário.
A mãe partiu e o casamento acabou algum tempo depois que ela, acelerando o passo começou a arrumar a cama enquanto ele tomava banho, lavar a louça enquanto ele seguia o primeiro telejornal e ajeitar roupa e cabelo usando o espelho do elevador.

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A PALAVRA É RECONCILIAÇÃO

jun 22, 2011 por

O mundo que vejo depende da janela que abro. Nalgumas, o descalabro, o abuso, a submissão, aportes da tristeza e descrença. Noutras, a inocência, o otimismo, o comprometimento, a solidariedade e a simplicidade de quem segue cuidando dos seus.

 

Neste contraditório mundo há tantas janelas e tantos mundos quanto meus olhos queiram.

 

Escolhi abrir a boa janela da arte.

 

Primeiro a da palavra, do gesto, da postura, da interpretação irretocável de Toni Ramos e Dan Stulbach no filme Em Tempos de Paz. O descalabro transfigurado em poesia de corpo e voz, a adaptação da peça de Bosco Brasil, é quase teatro na tela.

Um filme remete a outro. Retratos da Vida, de Claude Lelouch com coreografia de Maurice Bèjart, tem na música e na dança suportes para desnudar o absurdo com sensibilidade.  No elenco Geraldine Chaplin, James Caan, Robert Houssein, Nicole Garcia, Fanny Ardant, Jorge Donn, Rita Poelvoorde.

Mais de vintes anos separam Tempos de Paz e Retratos da Vida. Uma palavra os une:

RECONCILIAÇÃO.

E por falar em arte, na belissima ilustração de Erly Ricci, o por do sol na Ponta da Pita, Antonina, Pr. As fotos também são dele.

 

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CAMINHO SUAVE

jun 4, 2011 por


Sempre que volto à infância reencontro a menina franzina e acanhada, que gastava as tardes deitada no assoalho encerado e lustrado com escovão, metade do corpo sob a cama e livro aberto à frente. A mais miúda da turma, sempre. Talvez por isso a velha mesa de madeira, verde e fosca, ainda pareça grande e a menina continue ajoelhada sobre cadeiras de mesma cor.
Foi sobre a toalha de algodão cuidadosamente arranjada, que lá pelos sete anos, abriu a cartilha e ficou a cultuar secretamente a vaidade por saber ler. Passava de uma página a outra, corria os olhos sobre os aglomerados de letras, sem se ater aos desenhos. Ela sabia! Bastava olhar as palavras e, de imediato sabia reproduzir os sons ali aprisionados.
Mergulhada em abelhas, dados, dedos, facas e focas, não viu a mãe entrar. E ela observou algum tempo antes de interpelar. Você já sabe ler?
Ela sabia! Conseguia dizer o que cada amontoado de letras continha sem pestanejar e sem pestanejar foi apontando, falando, virando página e apontando e falando sem soletrar.
A mãe duvidou da precocidade do aprendizado. E duvidando tomou a cartilha e abriu na última página onde estava o alfabeto. Ordenou que a menina nomeasse cada letra, mas das letras, ali soltas, desligadas, perdidas, ela nada sabia. A mãe insistiu: talvez as vogais, talvez o “b” de barriga.
Talvez pudesse lembrar, mas a mãe duvidava e acho que a menina também.
Ainda ouviu a mulher, que saía decepcionada retrucar: você sabe ler coisa nenhuma, só decorou as palavras.
Ela sabia que não tinha decorado nada, nem mesmo o nome daquelas letras intrometidas e soltas. Só não sabia explicar. E despojada do encantamento fechou “O Caminho Suave”, foi para o quarto, enfiou metade do corpo sob a cama e lá ficou até adormecer.
Não demorou muito para que, numa noite, esquecendo o mundo ao redor se distraísse com as prateleiras repletas de bebidas. Eram tantas que esqueceu a presença da mãe e ficou a rodopiar os olhos. E assim, distraída, leu em voz alta rótulos e mais rótulos fixados nas garrafas. Conhaque, São João, Sparta, Aguardente, Oncinha, Tatuzinho… Logo foi interrompida pela mulher que encantada com a proeza, comemorava. Mas a menina franzina e acanhada não dividiu com ninguém a alegria de ser capaz.

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Resgate

maio 26, 2011 por

O mar revolto não impedia o avanço. O repuxo, provocado por ondas em rochas também não. Lembrava o navio antigo e descolorido, sabia identificar a exata posição em mar aberto. Quase o via.

resgate_0

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DA NATUREZA DE DEUS

maio 21, 2011 por

 

 

“Deus não cobra estresse, apenas trabalho disciplinado e doado com amor”

Gilda Moura

 

Mas o que sei de Deus?

 

 

 

 

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GOSTO DE LARANJA

maio 6, 2011 por

Seria poeta e enalteceria as veredas de minha infância. Não aprendi a versejar, nem existiam veredas nas terras onde cresci. Mas os caminhos desnudos sempre desembocavam em pomares, fartos de frutas a curvar galhos e galhos.

Na memória não há rimas, mas o gosto da laranja recém apanhada que minha mãe descascava e distribuía aos filhos. A bacia cheia, a roda no entorno, o cheiro do sumo se desprendendo da casca, a pele branca e sem machucados e o prazer raro exibido pela mulher que nunca descansava.

Fortuitos momentos nos quais me ensinava a amar.

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