Lá vem Maria

O PRAZER DAS PALMAS RITMADAS

ago 22, 2011 por

Na década de sessenta, talvez no mesmo ano em que o prefeito de minha cidadezinha de interior teve que fugir para não ser preso, eu desfilava de branco. À frente, a fanfarra. Na sequência nós, alunos e alunas do Grupo Escolar Olavo Bilac e do Ginásio Professor Giampero Monacci.
As ginasianas usavam saias azul marinho e camisas brancas, mas nós íamos de guarda-pós brancos sobrepostos aos vestidos e acompanhados pelas meias três quartos, também brancas, e sapatos pretos.
Na época não atinava com o motivo da fuga do prefeito. Homem simpático, inteligente, simples, pacífico e pai de minhas colegas de escola. Mas o acontecido era fato quase periférico. Algo posto no mundo global ou, talvez, na borda, no limite entre meu universo e o universo maior. O desfile de sete de setembro, ao contrário, tinha relevância maior. Para ele ganhei sapatos novos, meias novas, guarda-pó novo. Queria fazer tudo certo, desfilar direitinho, mas a verdade é que de tempo em tempo recebia de uma das professoras uma leve cutucada e o aviso: acerte o passo.

Mais de quarenta anos depois descubro que guardo do homem e de sua família, imagens semelhantes as das fotos antigas e amareladas,  que com o tempo perderam a nitidez. Fotos que carreguei comigo enquanto descobria que a discordância é duramente penalizada desde o inicio do que designamos “civilização”. Descubro também um elo sutil, uma espécie de solidariedade camuflada dirigida ao homem e à sua família.

Mais de quarenta anos e descubro que vivi, secretamente, tentando “acertar o passo”.
Marchar ou bater palmas em harmonia com o grupo? Não, ainda não consigo. Não dou conta de dar constância aos intervalos, de manter a força nas batidas ou repetir uma sequência determinada. Mas descobri o prazer de bater minhas palmas ritmadas.
Parece supérfluo, esquisito, irrelevante?
Não para uma criança que em meio aos colegas, luta com o seu próprio corpo para acompanhar o exercício coletivo.

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O INDECIFRÁVEL

ago 18, 2011 por

foto: silzi mossato

Do pico da montanha o indecifrável olhava o mundo. Tinha a incumbência de descobrir o sentido da designação dada a uma classe de habitantes: os seres racionais. E lá do topo viu alguns cultivando flores e perguntou: porque cultivá-las se bastava deixar que a natureza do lugar seguisse seu curso e florescesse a seu modo? Era estranho, mas apesar da contradição, criavam beleza e harmonia, propiciando, a si e seus semelhantes, bem estar e equilíbrio. Registrou sua primeira impressão: há na racionalidade farpas de ambiguidade.

O indecifrável também atentou para os que plantavam alimentos. Frutas, verduras, legumes, cereais. Antes, punham abaixo as matas que lhes proviam, mas, apesar do disparate, cuidavam de alimentar a si e aos outros.  Assim os racionais obtinham força para cumprir suas jornadas.

Teria registrado a impressão. Desistiu ao perceber que alguns inventavam venenos, jogados sobre os mesmos alimentos. Ficou confuso. E a confusão aumentou ao ver que um grupo apanhava para si o resultado do labor de tantos, exigindo, para disponibilizar aos outros, altas compensações. E, não raramente, estoques apodreciam enquanto semelhantes definhavam, com fome.

Antes que atinasse com o propósito de tais absurdos, vislumbrou guerras de inumeráveis escalas. E também reconstrutores, cuidadores, protetores, apaziguadores.
O indecifrável deixou o pico da montanha e na tentativa de concluir a tarefa, buscou refúgio nas nuvens. Depois de debruçar-se demoradamente sobre a questão, pontuou: racionalidade implica em destruir o perfeito e recriar à própria semelhança, com infindáveis imperfeições.

A incumbência parecia concluída, mas o indecifrável retomou os apontamentos para um registro ao pé da página.

O desafio maior dos indefiníveis seres racionais é manter a crença, enquanto buscam o reencontro com a perfeição destruída.

 

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MANJAR DOS DEUSES

ago 8, 2011 por

Inventamos a marcação do tempo. E concebemos que na linha imaginária que coordena nossas vidas, há pontos relevantes, que servem de marcos à revitalização. Natal e Ano Novo são exemplos de marcos coletivos. Quinze anos, dezoito ou vinte e um anos, vinte e cinco ou trinta anos, quarenta ou cinquenta anos servem como marcos na vida pessoal. Creio que minha vida vinha seguindo a regra, mas agora decidi inventar meu próprio ponto: cinquenta e quatro anos.
Era data de aniversário e, portanto, o momento certo para presentear-me com um dia peculiar e feliz, marco de nova etapa. Depois do abraço afetuoso e dos primeiros votos de feliz aniversário, a preparação do café da manhã. Atitude rotineira? Com certeza. Mas adicionei um pouco de lentidão e uma pitada a mais de cuidado. Comecei ajeitando ao redor do círculo de mamão, pedaços de kiwi e morango e curti o resultado. Uma flor colorida a ser degustada vagarosamente.
Atividades ao computador, apenas para responder aos amigos. No atelier de cerâmica, acabamentos feitos sem pressa alguma.

Quis um almoço de aniversário, então substitui o arroz integral de sempre pelo macarrão levemente gratinado, com molho de frango desfiado, enfeitado com rodelas de abobrinha e folhas de brócolis ao bafo, coberto com molho branco e queijo. De entrada uma salada farta, receita desenvolvida a dois e que neste dia foi feita pelo meu companheiro: beterraba, cenoura, maçã, folhas cortadas e cheiro verde.

Tudo regado com azeite de oliva extra virgem e shoyo. Para tornar o prato mais bonito e saboroso, kiwi e morangos ao redor.
A sobremesa de sempre – pedacinhos de chocolate com café puro – foi substituída pela torta de frutas, também receita própria.Primeiro uma camada fina de massa preparada com gordura vegetal, farinha de trigo, centeio, açúcar mascavo e ovo. Para a cobertura, uma camada de maçã, uma de kiwi e morango e a última de banana, polvilhada com açúcar mascavo e canela. Vinte e cinco minutos de forno preaquecido e pronto.

A louça ficou à espera. Responder ao e-mail dos filhos e dos amigos era prioridade. Outras atividades no atelier também foram postergadas para que pudesse dar a tempo à conversa.

Ao final do dia, o convite para pizza em algum lugar da cidade foi declinado. Em seu lugar, um lanche com fatias de pão integral, cobertas com ricota e requeijão e gratinadas; vinho branco e uma longa e calma conversa no entorno da mesa.

No dia seguinte, revitalizada, retomei a rotina de trabalho. A experiência fez com que entendesse que felicidade e êxtase ou euforia são antagônicos. A felicidade está contida no pertencimento, na troca, na disponibilidade para si e para o outro, na simplicidade. Talvez por isso felicidade seja o MANJAR DOS DEUSES.

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TRÊS MARIAS

ago 1, 2011 por

A primeira, tendo esgotado o tempo de cuidar, deixou que os filhos caminhassem a seu modo e partiu do norte ao centro. Antes viveu como cavalo selvagem que enfrenta o domador, derruba o dono da espora, arrebenta a cerca e foge. Segue solitário, não sei se em busca do lugar conhecido ou do encontro. Mas não foi como cavalo selvagem que cuidou dos filhos. Foi como leoa, que a qualquer sinal de perigo, rosna para afugentar o predador enquanto prepara a defesa.
Não quis que os filhos seguissem caminho semelhante ao seu. Soube reconhecer que os campos sem donos e cercas desapareceram e com eles, a relva e a vida em bando.
Entre leoa e cavalo selvagem não descobriu muito além dos conflitos, entremeados de parcos momentos de paz. Mas manteve o empenho para que as crias descobrissem a dádiva da vida compartilhada, da troca, do cuidar e ser cuidado, que perseguiu e nunca experimentou. Quando, enfim, conheceu um pouco de harmonia, sublinhou na lista das suas tristezas apenas dois itens: decepcionar uma pessoa amada, em especial um filho e não ter se reconciliado com quem já havia partido. Antes de seguir em frente, cuidou de perdoar-se.

A segunda, reconhecendo a imperfeição do mundo, partiu do sul ao centro. Fez ruptura abrupta. Mal conseguia ficar em pé, quando sentenciou o fim da era dos abusos. A beira da exaustão, sem distinguir entre efeitos do excesso de trabalho e do acumulo de frustração, deitou e se aninhou sob cobertores. Ali ficou porque era tempo de luto e cultivava o respeito pela hora de depurar. Quando o corpo reagiu, tomou papel e lápis e escreveu o mundo de sua predileção.
Para cada esforço, uma recompensa. Para cada gentileza, um agradecimento. Para a entrega, aconchego; para as dúvidas, respostas; para tropeços, mãos amigas.
Antes do próximo passo, desatou o excesso de exigência consigo mesma.

 

A terceira,  despejada dos sonhos compartilhados, arranjou um canto próprio, no centro, onde sempre esteve. Havia muito que desejava passear, andar por lugares iluminados, ir ao cinema, talvez ao teatro, comprar roupas novas que atendessem ao seu gosto. Mas realizar planos implicava em adiar uma centena de pequenos prazeres e ela adiava. Nunca encerrava os dias sem pendências, mas, secretamente, reservava os finais de semana às carícias e ao aconchego. Seguiria abdicando e lutando com os afazeres. Seguiria, não fosse a solidão das noites de sexta. Numa delas, enxergou à frente um homem dúbio. Não viu a lealdade desejada e sem ela não viu o companheiro de jornada.
Entristeceu, mas não abdicou dos planos. Cuidadosamente refez os cálculos. Daria aos sonhos o tamanho de sua própria competência. Partiu sem escrever palavra.

Numa noite de verão o destino reuniu as três Marias, quando, enfim, se assumiam Madalenas.

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OPS! DEFLOCULEI OS NÓS.

jul 23, 2011 por

Acordei estranha. Bem estranha.
Ao sair da cama portava uma leveza de quem perdeu alguns quilos enquanto dormia. Olhei a imagem do espelho e os quilos estavam no mesmo lugar, mas a leveza persistiu. E além dela, outros sintomas fenômenos: maleabilidade, mobilidade, alegria, disposição.
Não dava pra deixar rolar e então, enquanto organizava o material necessário ao dia de trabalho fui puxando os fios de alguns nós. Lembrei as rasteiras que levei e elas já não eram rasteiras, mas fatos consumados e agora descartados, que naqueles momentos serviram para alguma coisa que não lembro. Pensei nas pessoas que me magoaram, mas a mágoa já não estava lá. E as lembranças apareceram em companhia de um discernimento constrangedor. Uma espécie de entendimento multifacetário que meu repertório não permite explicar. E as dores? Essas, creio, entraram em férias ou partiram sem qualquer aviso. A decepção, onde foi parar? Os feixes de frustração?
ilustração: Erly RicciSem mais nem menos, acordei com a  respiração fácil,  bem estar corporal e fluidez das boas emoções: coisas esquisitas acontecendo num dia comum de trabalho. O jeito foi acomodar-me ao imprevisto e começar a produção dos objetos de cerâmica. Primeiro, a água no batedor de barbotina. Depois, com a máquina em atividade, a argila seca adicionada aos poucos, junto com um tanto de caulim e outro de filito. Ao creme tão espesso quanto vitamina de abacate adicionei, para finalizar, gotas de defloculador. Num instante, o creme virou líquido fino, que rodava ao impulso da hélice, exibindo mechas acetinadas.

OPS! Entendi a estranheza toda!

Cinco meses de Florais de Bach e defloculei os nós.

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MEU PAI, O PAI DE MEUS FILHOS, MEUS FILHOS

jul 21, 2011 por

“Os homens são difícies…permita-me dizer de que maneiras.”
A declaração não foi feita por uma mulher, mas por um homem, psicólogo, autor do livro “SE OS HOMENS FALASSEM… “. Ainda não li a obra de Alon Gratch, mas o titulo do primeiro capítulo, a frase inicial do texto, fez com que a vasculhasse ligeiramente. Conclui que o livro merece atenção. Mas antes é relevante declarar: não sei como serão os filhos de meus filhos, mas reconheço nas três gerações pelas quais transito,  a silenciosa transformação da condição masculina.

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