Lá vem Maria

TRAVESSIA

jan 19, 2012 por

Hoje não escrevo ficção.
Hoje compartilho a serenidade do ato de caminhar sobre a ponte de boa estrutura. Descubro aos quase cinqüenta e cinco anos o prazer da travessia sem solavancos, antevendo com segurança o lugar de chegada.
Vivi no sul, no nordeste e no centro oeste. Repeti cidades sem cimentar alicerces, convivi com pessoas de diferentes convicções e índoles, experimentei a vida sem a comodidade do pertencimento.
Poderia dizer que andei por aí, sem rumo, mudando de atividade, desperdiçando talentos. Mas escolho afirmar que transitei por espaços, acumulando vivências enquanto buscava meu lugar e minha tarefa no mundo.
Na última semana, durante uma curta viagem fui contaminada pela opressão da vida de outros, ao transitar ente eles e vivi na pele e nas entranhas a sensação de estar em risco. Ao reencontrar os filhos, o companheiro de jornada e pessoas queridas que marcam meu caminho, entendi que conquistei o que há de melhor na vida. Posso viver a alegria de fazer parte, de ter uma família que me acolhe, de saber e de estar bem com caminho a ser trilhado. Marco a descoberta com um pensamento de Marie Fontaine:
“A vida é um presente maravilhoso. Para apreciá-la, desfrutá-la e aproveitá-la ao máximo é preciso dedicar tempo às coisas que realmente têm valor”

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SOLUÇÕES DE ESPEVITADO

dez 29, 2011 por

Diziam ao Espevitado que aquele era lugar de terra roxa, mas ele, veementemente, discordava. O que via grudado aos pés, era massa vermelha, quase marrom, que sustentava cafezais, pomares e milharais. Já não sustentava matas, senão no entorno dos riachos e rios. Homens brancos com seus machados afiados deitaram ao chão troncos imensos. Tão grandes que para serem abraçados, exigiam braços de vários homens e para serem tombados muitas e muitas horas de fortes machadadas. Era o que contavam seus pais, porque na época ele da morte das árvores de troncos de muitos braços, nem havia chegado a esse mundo contraditório e disparatado.
Espevitado ficava acabrunhado sempre que ouvia as histórias dos colonizadores do lugar. Na cabeça as questões cresciam e  acumulavam. Precisava mesmo derrubar tudo? Quem disse que os bois não viveriam felizes entre árvores imensas? Não bastava limpar em baixo e deixar umas clareiras? E para que plantar tanto café? As matas que as fotografias amareladas e sem cor mostravam,  não escondiam o que comer? Para que fotografias daquilo que nunca poderia ver nem experimentar? Para que matar tanta planta e tanto bicho? Para que encher o mundo de café? Índio não vivia sem café e não dava um jeito de ter mandioca sem derrubar tudo?
O menino cresceu, mudou de cidade, intelectualizou, mas a alma cultivou o Espevitado.

Alma de Espevitado é alma que não cala. Alma que não cala vive sofrendo podas. Alma podada é alma consternada. Assim seguia o homem, sufocado entre prédios e carros, tentando ver luz onde não encontrava janela.

Espevitado não encontrava janela, mas depois da porta havia uma rua e lá pela rua ia Melina, arisca, sempre pronta para a defesa;  Dudu, que querendo ou sem querer destruía tudo que lhe caía nas mãos; Rosinha, que a qualquer sinal de violência sumia num canto qualquer e lá ficava encolhida; Nena, que nunca pensava, revidava antes e olhava o adversário depois; Juju que respondia aos ataques com  gritos estridentes enquanto João tapava os ouvidos.

O Espevitado que vivia no homem espreitava e sussurrava e apontava e insistia, até que o homem entendeu, deu costas aos prédios e carros e seguiu rua acima e rua abaixo, reaprendendo a viver.

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O ESPEVITADO

dez 20, 2011 por

Espevitado cresceu entre ruas poeirentas de um lugarejo qualquer. Viu as eleições desaparecerem da ordem política, memorizou trechos a respeito de democracia, parte da educação moral e cívica que de repente apareceu na sua escola, partiu com a família rumo à cidade de ruas asfaltadas para adolescentar e adultecer. Lá perdeu o apelido, concluiu o curso universitário, foi iniciado em um partido clandestino, ficou decepcionado logo nas primeiras reuniões, desistiu de tramitar na política partidária, entrou para o mestrado, criou a própria metodologia para resgate de crianças em risco e obteve bolsa de pesquisa. Mas o mestrando que carregava na alma o moleque matreiro esbarrou em meia dúzia de senhoras que presidiam a instituição onde implantava suas idéias. Senhoras comprometidas com a causa, esposa de militares de muitas medalhas e que não concebiam em circunstâncias quaisquer a inversão da ordem tão regularmente acondicionada pela instituição de seus maridos e parentes. Esbarrou, foi laureado com o título de subversivo e impedido de dar continuidade ao sonho. E, antes que pudesse absorver o golpe, lá estava ele, evitando os olhos da orientadora.
Desfecho de repetição. Frustração reincidente.
Ainda na universidade o haviam acusado de russista. Certamente criaram o termo apenas para atribuí-lo ao rapaz. Mas ele não via propósito no título. Não acreditava nos devaneios pró Rússia nem na propaganda anti comunista. Depois o chamaram lulista. Mais um disparate. Seguia os movimentos sindicais paulistas, as assembléias e greves, torcia por resultados favoráveis aos operários e admirava sim, o homem que dava a cara à tapa. Mas isso não fazia dele um adepto fervoroso. Não via esperança para o capitalismo e não idealizava o socialismo. Reconhecida em cada uma dessas concepções apenas uma ordenação sócio-política imperfeita como qualquer criação humana.
Não bastasse, entre familiares devotos era conhecido como ateu. Suas argumentações não resultavam positivas e resolveu a questão se declarando agnóstico.
A verdade é que não seguia religião alguma, não fazia parte de seitas, facções, grupos de direita ou esquerda. Definia-se apenas como pensador. Pensava a vida, as mazelas do lugar onde vivia, os percalços daqueles que sustentavam a base daquilo que de um a outro pólo do mundo chamavam progresso. Pensava e se indignava, mas acreditava que poderia contribuir para diminuir a desumanidade do sistema.
Suas crenças e metas não o arrancaram da manhã torturante frente a orientadora equânime. Ela, no entanto, quis apenas um relato sucinto e objetivo da situação. Ele tentou desobstruir a garganta para que a emoção não se revelasse àquela mulher imparcial. Mas falhou e a indignação atropelou a objetividade. Ainda assim, manteve brevidade pedida.
Esperava a intervenção de sempre, pontuando a relevância do distanciamento. Ela, por sua vez, lançou uma única e singular questão: você é subversivo?
Os familiares, os colegas de faculdade, pessoas de suas relações afetivas, amigos. Todos, a um só tempo, apontavam que sim, mas ele os desconsiderou e disse apenas: depende do ponto de vista.
De novo, foi surpreendido pela mulher, que deixando a mesa pesada para trás, andou pela sala antes de dar o veredito: sua metodologia é definitivamente subversiva e é por isso que aceitei ser sua orientadora.
O mestrando perdeu o prumo. Silenciou e esperou. Ela voltou à mesa, abriu um dicionário, apontou e, ao mesmo tempo leu em voz alta: subversão, ação ou efeito de subverter. É para subverter essa ordem cruel que estamos trabalhando. Ou não?
Ele fez um sinal com a cabeça enquanto ela continuava: a reação da diretoria do lugar mostra que sua metodologia faz o que promete, mas se não aprender a proteger seu trabalho ela não serve pra muita coisa.
A clareza, o discernimento, o entendimento aportaram no rapaz. Mas as palavras sumiram. E sem que retornassem, deixou que ela continuasse: você pode concluir com esse resultado ou inventar um jeito de reaver a aplicação. Volte quando souber o que fazer.
O mestrando deixou a sala, andou pelos corredores, desceu a escada externa, ganhou as ruas e entendeu que precisava de uma longa conversa com o espevitado que a alma acolhia.

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ENTRE RIMAS E RELEVÂNCIAS

dez 6, 2011 por

Apanhou os apetrechos de sempre e arremessou para dentro da bolsa que continuava desorganizada. Correu para a mesa da cozinha, acondicionou sanduíche, fruta e iogurte e jogou no mesmo espaço dos celulares, escova e agasalho. Olhou para o grande relógio de parede e soltou o famoso: putz, de novo! Agarrou as chaves, apanhou a bolsa, trocou os chinelos pelos sapatos que esperavam junto à saída, arrastou a porta, trancou, correu para o portão, abriu e fechou rapidamente e começou a ziguezaguear entre poças d’água que tomavam a rua de terra argilosa.

Da porta de casa ao calçamento foi discursando em pensamento: Senhor político sem noção, que vive bajulando essa gente que se designa mais que a gente, bem podia ganhar a próxima eleição melhorando nossas vidas, com manilhas, calçamento e despoluição. E não adianta assinalar a rima pobre, que mais pobre é essa sua dissimulação, esse mau entendimento, esse erro de direção.

Teria continuado com a tagarelice rimada, mas chegando ao calçamento lembrou o atraso corriqueiro e correu. Esbaforida e ofegante foi cumprimentando um e outro, ajeitando a bolsa, tentando limpar os sapatos. Apressou ainda mais o passo quando a vizinha que voltava do mercado avisou: corre que faz um tempinho que o ônibus foi pro ponto final!
Ela correu, mas vinte ou trinta passos antes de atingir destino o coletivo passou. Ainda acenou para o motorista, mas desta vez ele não se lembrou de olhar para o lado. Distraído, não parou no meio do cruzamento para poupa- lá da longa espera. Estacionada no meio da rua, soltou a língua em voz alta: droga! nunca aprendo!

Seguiria com  a auto-recriminação, mas um carro parou logo à frente e a motorista a chamou para uma carona. Correu, entrou, agradeceu, sorriu para menina que ocupava o banco de trás e tentou uma conversa amigável, mas não teve muito tempo antes que a mulher, depois de breve interrogatório, começasse a pregação. Ouviu a miscelânea de Deus e religião, transcendência e coincidência, sem objetar. Noutro contexto pediria educadamente que a pessoa encerrasse a interpelação e se preciso fosse, explicaria que não discordava da crença, entendida como particular, mas sim da tentativa de convencimento. Não podia ser tão honesta com a pessoa que havia salvado seu dia e escolheu mostrar apenas um lado de sua verdade: não discordava da crença…
A gentil e verborrágica motorista levava a filha ao médico, passaria pelo centro da cidade e a deixaria no trabalho. Seria sorte. No entanto sabia que o médico havia partido e retribuiu a gentileza, avisando a mãe aflita. Frente ao descompasso, indicou outro médico, no hospital público, localizado a um terço de seu destino. Desta vez não encontrou erro na própria atitude. Antes, apreciou a conduta, que acreditou correta.
Saltou rapidamente do carro, acelerou o passo e, sem atinar para o ato, passou a cantarolar qualquer coisa no mesmo ritmo. De novo, seguia esbaforida até que, erguendo os olhos viu a frente à pessoa que anos antes havia ajudado a detonar o trabalho que desenvolvia apaixonadamente. Não cessou a cantoria automática, não alterou a velocidade dos passos, mas a tagarelice do pensamento sumiu. Foi em frente, fixando aquele rosto, como se não o enxergasse com clareza. De repente ouviu: oi querida! e impensadamente respondeu com um oi, seco e truncado. Um lapso, mas a conexão voltou de imediato. Sem tempo pra comedimento deixou escapar: oi querida? Arg, urg, credo!
Não bastasse, imitou um cuspe antes que virasse para o lado e os olhos deparassem com o pequeno grupo de homens que ria de sua reação. Aproveitou para rir junto. Deu com os ombros, fez um gesto com as mãos e seguiu em frente. Mais alguns passos e topou com um arbusto coberto de flores incomuns. Considerando que o atraso já era fato parou para apanhar algumas. Depois enfiou a mão na bolsa, apanhou um dos celulares, viu que estava em cima da hora e decidiu poderia gastar uns minutos para presentear o namorado com seu pequeno e singular buquê.

Desatava o cadeado da porta do escritório, quando chamaram sua atenção pelo atraso. Concordou, mas antes de entrar perguntou em voz alta: que diferença isso fará em nossas vidas?

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TRILOGIA DA FÊNIX: A MENINA RUIM

nov 23, 2011 por

Ainda não tinha dez anos quando revidou à bofetada do irmão de dezoito atirando copos e talheres em sua direção. A mãe desconsiderou a bofetada e para corrigir o mau gênio, impôs um castigo. Para não piorar as coisas a menina ficou calada, ouvindo os resmungos da mulher: pra quem será que essa criatura puxou pra ser tão ruim?
A mãe não falava de má índole, crueldade ou perversidade, que conduta do gênero a filha não tinha. Ao contrário. Era gentil com os bichos, cultivava um pequeno jardim que ela própria havia criado, nunca batia em crianças menores, evitava brigas com colegas de brincadeira. Mas revidava a tudo que lhe desagradasse, fossem palavras ou atos. E nestes termos, levava adultos de todas as idades ao constrangimento.
Para não piorar as coisas a menina ficou calada. Não contou a ninguém, que mesmo tomada de raiva, evitava acertar o irmão com os copos, os garfos e as facas que atirava. Se soubessem de seu segredo, a vida poderia ficar ainda pior. Melhor o castigo injusto que o risco eminente.

Ainda não tinha quinze anos quando, de ferro elétrico fumegante em punho, enfrentou o homem que ameaçava bater numa menina indefesa. Fez com que o ferro esbarrasse na mão do agressor para que soubesse de sua disposição. O homem vociferou, mas saiu de cena enquanto a mãe, que assistia, reafirmava sua crença na natureza ruim da adolescente. Estava exausta e não quis argumentar. Guardou para si o alivio que experimentou ao ver o homem ceder. Seria doloroso machucar uma pessoa, ainda que para evitar que machucasse uma criança.

Não tinha vinte anos quando se opôs aos familiares que ameaçavam expulsar um dos membros. Não conseguiu convencê-los da validade de seus argumentos, mas os imobilizou e obteve a suspensão da sentença. A mãe louvou sua ruindade e festejou a inteligência expressa na argumentação. Ela, no entanto, não mostrou conivência. Indignação e raiva a haviam induzido, mas também a exauriam.

Beirava os trinta anos quando surpreendeu funcionárias sob sua supervisão debatendo a seu respeito. Uma, recém chegada, falava das cismas impostas pelos comentários ouvidos. Outra, mais antiga testemunhava a respeito do apoio recebido. Não evitou a situação, fez piada com os títulos recebidos á revelia, deixou o grupo à vontade e partiu incomodada.

Completaria trinta e cinco anos quando, numa brincadeira de amigos secretos uma colega de trabalho, favorecendo a adivinhação, definiu seu amigo ou sua amiga como a pessoa mais respeitada ou temida da organização. Ela gritou o nome do presidente enquanto ouvia de todos os outros, seu próprio nome. Brindou à sua capacidade de ordenar atitudes apenas com sua presença, riu com os demais e partiu cansada de ser “uma pessoa ruim”. Semanas depois estava decidida a aparar os espinhos e dar vazão ternura, que acreditava enclausurada.

Tinha quarenta anos completos e passava por grande dificuldade financeira e de saúde. Era comum que a buscassem para apoio, para pedir favores, para apropriação de suas idéias e conhecimentos. De resto, estava sozinha. Aos pouco as capacidades de sonhar e criar embotaram, o corpo deformou e as dores o tomaram.
Urgia que descansasse, necessitava de tempo e lugar para regenera-se, mas principalmente sentia o desespero de ver-se desalojada de si.

Enfim, comemoraria quarenta e cinco anos revitalizada pelo encontro com um homem de gênio ruim. Para dar conta da convivência resgatou argumentos, poliu a indignação, apropriou-se das situações que instigavam sua raiva e entendeu que sua ternura, para florescer, precisava de suas farpas afiadas. Bastava que soubesse quando baixar a guarda.

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