dez 6, 2011 por Silzi Mossato
Apanhou os apetrechos de sempre e arremessou para dentro da bolsa que continuava desorganizada. Correu para a mesa da cozinha, acondicionou sanduíche, fruta e iogurte e jogou no mesmo espaço dos celulares, escova e agasalho. Olhou para o grande relógio de parede e soltou o famoso: putz, de novo! Agarrou as chaves, apanhou a bolsa, trocou os chinelos pelos sapatos que esperavam junto à saída, arrastou a porta, trancou, correu para o portão, abriu e fechou rapidamente e começou a ziguezaguear entre poças d’água que tomavam a rua de terra argilosa.
Da porta de casa ao calçamento foi discursando em pensamento: Senhor político sem noção, que vive bajulando essa gente que se designa mais que a gente, bem podia ganhar a próxima eleição melhorando nossas vidas, com manilhas, calçamento e despoluição. E não adianta assinalar a rima pobre, que mais pobre é essa sua dissimulação, esse mau entendimento, esse erro de direção.
Teria continuado com a tagarelice rimada, mas chegando ao calçamento lembrou o atraso corriqueiro e correu. Esbaforida e ofegante foi cumprimentando um e outro, ajeitando a bolsa, tentando limpar os sapatos. Apressou ainda mais o passo quando a vizinha que voltava do mercado avisou: corre que faz um tempinho que o ônibus foi pro ponto final!
Ela correu, mas vinte ou trinta passos antes de atingir destino o coletivo passou. Ainda acenou para o motorista, mas desta vez ele não se lembrou de olhar para o lado. Distraído, não parou no meio do cruzamento para poupa- lá da longa espera. Estacionada no meio da rua, soltou a língua em voz alta: droga! nunca aprendo!
Seguiria com a auto-recriminação, mas um carro parou logo à frente e a motorista a chamou para uma carona. Correu, entrou, agradeceu, sorriu para menina que ocupava o banco de trás e tentou uma conversa amigável, mas não teve muito tempo antes que a mulher, depois de breve interrogatório, começasse a pregação. Ouviu a miscelânea de Deus e religião, transcendência e coincidência, sem objetar. Noutro contexto pediria educadamente que a pessoa encerrasse a interpelação e se preciso fosse, explicaria que não discordava da crença, entendida como particular, mas sim da tentativa de convencimento. Não podia ser tão honesta com a pessoa que havia salvado seu dia e escolheu mostrar apenas um lado de sua verdade: não discordava da crença…
A gentil e verborrágica motorista levava a filha ao médico, passaria pelo centro da cidade e a deixaria no trabalho. Seria sorte. No entanto sabia que o médico havia partido e retribuiu a gentileza, avisando a mãe aflita. Frente ao descompasso, indicou outro médico, no hospital público, localizado a um terço de seu destino. Desta vez não encontrou erro na própria atitude. Antes, apreciou a conduta, que acreditou correta.
Saltou rapidamente do carro, acelerou o passo e, sem atinar para o ato, passou a cantarolar qualquer coisa no mesmo ritmo. De novo, seguia esbaforida até que, erguendo os olhos viu a frente à pessoa que anos antes havia ajudado a detonar o trabalho que desenvolvia apaixonadamente. Não cessou a cantoria automática, não alterou a velocidade dos passos, mas a tagarelice do pensamento sumiu. Foi em frente, fixando aquele rosto, como se não o enxergasse com clareza. De repente ouviu: oi querida! e impensadamente respondeu com um oi, seco e truncado. Um lapso, mas a conexão voltou de imediato. Sem tempo pra comedimento deixou escapar: oi querida? Arg, urg, credo!
Não bastasse, imitou um cuspe antes que virasse para o lado e os olhos deparassem com o pequeno grupo de homens que ria de sua reação. Aproveitou para rir junto. Deu com os ombros, fez um gesto com as mãos e seguiu em frente. Mais alguns passos e topou com um arbusto coberto de flores incomuns. Considerando que o atraso já era fato parou para apanhar algumas. Depois enfiou a mão na bolsa, apanhou um dos celulares, viu que estava em cima da hora e decidiu poderia gastar uns minutos para presentear o namorado com seu pequeno e singular buquê.
Desatava o cadeado da porta do escritório, quando chamaram sua atenção pelo atraso. Concordou, mas antes de entrar perguntou em voz alta: que diferença isso fará em nossas vidas?
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