Lá vem Maria

O BOM VIZINHO

ago 31, 2011 por

foto:silzi mossato

Vivo quase à beira da baía de mar e mangue.
A baía vive envolvida em montanhas.
As montanhas vivem cobertas pela mata atlântica.

Ao lado de minha casa tem um beco.
No fim do beco tem uma casa.
Na casa vive um pescador e sua família.
No quintal da casa tem um barco em construção.

Na primavera e no verão escuto o pescador e seus filhos, que na aurora, saem pro mar.
Nas manhãs de sol de qualquer estação ouço os ruídos da serra ou as batidas do martelo e sei que a estrutura do barco ganha novas peças.

foto: silzi mossato

Nos fins de tarde, ao por do sol de muitas cores da Ponta da Pita vejo o pescador à beira d’água. Ao pé do velho barco, repara sua rede enquanto entre moleques, na areia da prainha, o filho brinca com a bola.

Poesia?
Não. Vida. Singela vida sem excessos ao ritmo das marés, das estações do ano, das fases da lua.

O assoreamento torna a baía mais rasa.
A falta de saneamento torna a baía mais poluída.
As catástrofes ameaçam os morros que envolvem a baía.
Os inúmeros pedidos de autorização para a lavra dos minérios que estão sob a riquíssima mata atlântica… não sei o tamanho do estrago que hão de provocar.

Desenvolvimento?
Não. Predação violenta. Atentado a todas as formas de vida.

foto:silzi mossato

Mas no lugar onde moro, árvores crescem nas fendas das pedras, bromélias lançam milhares de sementes no ar e o verde brota nas fendas do concreto.

E n’algum tempo, seres sábios erguerão pequenas casas, construirão barcos sem pompa, tecerão redes, terão filhos que os acompanharão ao mar.

Vida, sucedendo predadores.

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MARTE PRECISA DE MÃES QUÍTCHUAS

ago 26, 2011 por

Em dezembro de 1983 desci os Andes sobre o tanque de um caminhão, em noite de chuva, em companhia de mulheres da etnia quítchua.
Dito assim parece uma aventura radical. Mas eu era a única mulher inconseqüente a participar da peripécia. As demais simplesmente cumpriam com o que lhes cabia cumprir, e o faziam sem improviso.
O caminhão que servia ao transporte de combustível estava vazio, portanto, liberado para transportar pessoas e suas mercadorias. A adaptação estava restrita a uma escada acoplada ao tanque e uma “cerca de segurança” sobre o mesmo. As mulheres quítchuas arrumaram suas trouxas de mercadorias, que também serviam de encosto e eu as imitava. Depois de acomodar a mochila, entrei no saco de dormir impermeável, que imaginava suficiente e tentei relaxar. Seria apenas uma noite, sobre um tanque, numa estrada estreita, de chão batido, cercada de precipícios, aos três mil metros de altitude, entre desconhecidas que falavam entre si num dialeto que desconhecia.
Elas desataram seus cobertores de alpaca e cobriram seus chapéus, suas muitas blusas e saias, seus sapatos. Creio que não se moveriam músculo, não fosse a chuva fina e fria que começou a cair. Uma delas sacou um plástico e sem alarde começou a armar uma tenda. As demais a auxiliaram e sem perguntas me incluíram na cobertura. Mais tarde falaram entre si e, creio que concordaram que meu saco de dormir não era tão eficiente quanto seus cobertores. Desataram outra peça e me ofereceram.
As mulheres eram as transportadoras e as comerciantes de seus produtos. Plantavam, colhiam, embalavam, carregavam, exigiam, brigavam, exerciam os princípios de seu povo.

Foi minha primeira incursão num universo deliciosamente destoante do meu. Uma incursão rápida, sem muito tempo para apropriação desse outro modo de viver, mas com marcas suficientes para que quisesse voltar. E voltei.                                                                                                              
Viajei em ônibus precários, sem banheiro, sob o pó das encostas andinas. Atravessei parte do território boliviano sobre carrocerias de caminhão, apinhadas de homens, mulheres e crianças. Nunca presenciei uma cena de birra. Não me recordo de crianças irritadas, chorando sem parar. E elas estavam por todos os lugares, calmamente aconchegadas nas costas de suas mães. E ali comiam e dormiam, silenciosamente.

Não sei como esses povos vivem na atualidade. Talvez enfrentem maiores dificuldades que na década de oitenta. Talvez tenham avançado em sua luta pelos seus direitos. Mas não sucumbiram nesses quinhentos de colonização e creio que não sucumbirão às intempéries globais.
Lembrei das mães quítchuas quando vi o filme Marte Precisa de Mães. Lembrei também de uma fala da personagem Julia, da peça “Foi Bom Pra Você? Ou Escola de Sexo Para Homens” postada na categoria Dramaturgia deste blog. Ela diz:

Essa coisa de igualdade de direitos têm mais efeito colateral que curativo. Eu não sei se quem inventou isso foram as feministas ou os donos de grandes capitais. Se foram as feministas, o resultado tem sido desastroso. Mais aumentaram as obrigações que igualaram direitos. Se foram os capitalistas, a estratégia foi de extrema eficiência. Conseguiram mão de obra abundante, menores salários, maior agressividade na disputa de mercado”.

Certamente, tanto quanto Marte, a América precisa de mães. Mas antes de atearmos pedras às feministas, aprendamos as lições ensinadas pelas mães não colonizadas.

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O PRAZER DAS PALMAS RITMADAS

ago 22, 2011 por

Na década de sessenta, talvez no mesmo ano em que o prefeito de minha cidadezinha de interior teve que fugir para não ser preso, eu desfilava de branco. À frente, a fanfarra. Na sequência nós, alunos e alunas do Grupo Escolar Olavo Bilac e do Ginásio Professor Giampero Monacci.
As ginasianas usavam saias azul marinho e camisas brancas, mas nós íamos de guarda-pós brancos sobrepostos aos vestidos e acompanhados pelas meias três quartos, também brancas, e sapatos pretos.
Na época não atinava com o motivo da fuga do prefeito. Homem simpático, inteligente, simples, pacífico e pai de minhas colegas de escola. Mas o acontecido era fato quase periférico. Algo posto no mundo global ou, talvez, na borda, no limite entre meu universo e o universo maior. O desfile de sete de setembro, ao contrário, tinha relevância maior. Para ele ganhei sapatos novos, meias novas, guarda-pó novo. Queria fazer tudo certo, desfilar direitinho, mas a verdade é que de tempo em tempo recebia de uma das professoras uma leve cutucada e o aviso: acerte o passo.

Mais de quarenta anos depois descubro que guardo do homem e de sua família, imagens semelhantes as das fotos antigas e amareladas,  que com o tempo perderam a nitidez. Fotos que carreguei comigo enquanto descobria que a discordância é duramente penalizada desde o inicio do que designamos “civilização”. Descubro também um elo sutil, uma espécie de solidariedade camuflada dirigida ao homem e à sua família.

Mais de quarenta anos e descubro que vivi, secretamente, tentando “acertar o passo”.
Marchar ou bater palmas em harmonia com o grupo? Não, ainda não consigo. Não dou conta de dar constância aos intervalos, de manter a força nas batidas ou repetir uma sequência determinada. Mas descobri o prazer de bater minhas palmas ritmadas.
Parece supérfluo, esquisito, irrelevante?
Não para uma criança que em meio aos colegas, luta com o seu próprio corpo para acompanhar o exercício coletivo.

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O INDECIFRÁVEL

ago 18, 2011 por

foto: silzi mossato

Do pico da montanha o indecifrável olhava o mundo. Tinha a incumbência de descobrir o sentido da designação dada a uma classe de habitantes: os seres racionais. E lá do topo viu alguns cultivando flores e perguntou: porque cultivá-las se bastava deixar que a natureza do lugar seguisse seu curso e florescesse a seu modo? Era estranho, mas apesar da contradição, criavam beleza e harmonia, propiciando, a si e seus semelhantes, bem estar e equilíbrio. Registrou sua primeira impressão: há na racionalidade farpas de ambiguidade.

O indecifrável também atentou para os que plantavam alimentos. Frutas, verduras, legumes, cereais. Antes, punham abaixo as matas que lhes proviam, mas, apesar do disparate, cuidavam de alimentar a si e aos outros.  Assim os racionais obtinham força para cumprir suas jornadas.

Teria registrado a impressão. Desistiu ao perceber que alguns inventavam venenos, jogados sobre os mesmos alimentos. Ficou confuso. E a confusão aumentou ao ver que um grupo apanhava para si o resultado do labor de tantos, exigindo, para disponibilizar aos outros, altas compensações. E, não raramente, estoques apodreciam enquanto semelhantes definhavam, com fome.

Antes que atinasse com o propósito de tais absurdos, vislumbrou guerras de inumeráveis escalas. E também reconstrutores, cuidadores, protetores, apaziguadores.
O indecifrável deixou o pico da montanha e na tentativa de concluir a tarefa, buscou refúgio nas nuvens. Depois de debruçar-se demoradamente sobre a questão, pontuou: racionalidade implica em destruir o perfeito e recriar à própria semelhança, com infindáveis imperfeições.

A incumbência parecia concluída, mas o indecifrável retomou os apontamentos para um registro ao pé da página.

O desafio maior dos indefiníveis seres racionais é manter a crença, enquanto buscam o reencontro com a perfeição destruída.

 

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MANJAR DOS DEUSES

ago 8, 2011 por

Inventamos a marcação do tempo. E concebemos que na linha imaginária que coordena nossas vidas, há pontos relevantes, que servem de marcos à revitalização. Natal e Ano Novo são exemplos de marcos coletivos. Quinze anos, dezoito ou vinte e um anos, vinte e cinco ou trinta anos, quarenta ou cinquenta anos servem como marcos na vida pessoal. Creio que minha vida vinha seguindo a regra, mas agora decidi inventar meu próprio ponto: cinquenta e quatro anos.
Era data de aniversário e, portanto, o momento certo para presentear-me com um dia peculiar e feliz, marco de nova etapa. Depois do abraço afetuoso e dos primeiros votos de feliz aniversário, a preparação do café da manhã. Atitude rotineira? Com certeza. Mas adicionei um pouco de lentidão e uma pitada a mais de cuidado. Comecei ajeitando ao redor do círculo de mamão, pedaços de kiwi e morango e curti o resultado. Uma flor colorida a ser degustada vagarosamente.
Atividades ao computador, apenas para responder aos amigos. No atelier de cerâmica, acabamentos feitos sem pressa alguma.

Quis um almoço de aniversário, então substitui o arroz integral de sempre pelo macarrão levemente gratinado, com molho de frango desfiado, enfeitado com rodelas de abobrinha e folhas de brócolis ao bafo, coberto com molho branco e queijo. De entrada uma salada farta, receita desenvolvida a dois e que neste dia foi feita pelo meu companheiro: beterraba, cenoura, maçã, folhas cortadas e cheiro verde.

Tudo regado com azeite de oliva extra virgem e shoyo. Para tornar o prato mais bonito e saboroso, kiwi e morangos ao redor.
A sobremesa de sempre – pedacinhos de chocolate com café puro – foi substituída pela torta de frutas, também receita própria.Primeiro uma camada fina de massa preparada com gordura vegetal, farinha de trigo, centeio, açúcar mascavo e ovo. Para a cobertura, uma camada de maçã, uma de kiwi e morango e a última de banana, polvilhada com açúcar mascavo e canela. Vinte e cinco minutos de forno preaquecido e pronto.

A louça ficou à espera. Responder ao e-mail dos filhos e dos amigos era prioridade. Outras atividades no atelier também foram postergadas para que pudesse dar a tempo à conversa.

Ao final do dia, o convite para pizza em algum lugar da cidade foi declinado. Em seu lugar, um lanche com fatias de pão integral, cobertas com ricota e requeijão e gratinadas; vinho branco e uma longa e calma conversa no entorno da mesa.

No dia seguinte, revitalizada, retomei a rotina de trabalho. A experiência fez com que entendesse que felicidade e êxtase ou euforia são antagônicos. A felicidade está contida no pertencimento, na troca, na disponibilidade para si e para o outro, na simplicidade. Talvez por isso felicidade seja o MANJAR DOS DEUSES.

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