set 16, 2011 por Silzi Mossato
A mãe o chamava espevitado. A vizinha, traquinas. O homem do norte que tinha quitanda na esquina se referia a ele como “o buliçoso”. Mas eu, quando olhava aquele espeto de gente cruzando o pátio entre saltos e cambalhotas, via o sol explodindo entre nuvens.
Nunca parava. Enchia cadernos com criações que sobressaiam às lições. Expunha ideias esdrúxulas em meio as explicações e dúvidas sagazes que apontavam a estreiteza dos conteúdos acadêmicos.
Morava bem perto da escola e juro, não lembro vê-lo usar o portão. Chegava correndo à casa, jogava a mala para o quintal, batia uma das mãos no muro, atirava as pernas finas e longas para o ar e lá ia corpanzil magricelo para o outro lado.
Os cabelos negros que não deixava cortar balançavam, subiam, desciam se acomodando ao andar desengonçado, enquanto os olhos amendoados e irrequietos passeavam pelo entorno.
Espevitado, traquinas, buliçoso era também o dono do maior coração do mundo. Esse, o coração, vivia arranhado, porque mal cabia no tórax minúsculo. As coisas do mundo o indignavam. Não suportava ver alguém subjugado, maltratado ou ofendido que assumia as dores. Assumia e sofria as consequências. Revidava batendo portas, pintando monstrengos e rabiscando caricaturas. Mas logo esquecia os dissabores e seguia em frente, fazendo piruetas, saltando muros, interrompendo aulas com perguntas que incomodavam.
Não foi adolescente rebelde, apenas espevitado, traquinas e buliçoso. Acho que saltou alguma fase da vida porque logo era profissional criativo, requisitado e, liderança devastadora. Os colegas o queriam ao lado sempre que uma necessidade se tornava reivindicação. Do outro, os contratantes o desejavam longe de qualquer conversa. Mas sabiam que para afastá-lo teriam, também, que que abdicar dos seus devaneios que desembocavam em campanhas top de linha.
Ninguém espera que espevitado, traquinas e buliçoso mudasse, mas ele mudou. O primeiro sinal da estranha transformação apareceu durante uma reunião entre colegas e contratantes. Pouco falou, nada aceitou e ao final escreveu: estão sempre querendo um Joaquim José da Silva Xavier.O espaço vazio incomodou um e outro até que uma colega assumiu a liderança. Instantes depois ele registrava: enfim, conseguiram uma Joana D’Arc.
Os contratantes respiravam aliviados, mas o alivio não durou muito. Uma reunião para encaminhar novas campanhas resultou desastrosa. O homem de rosto afilado, não mexeu os cabelos e os olhos amendoados permaneceram fixos, como se atravessassem os apresentadores.
O publicitário, antes espevitado, traquinas, buliçoso havia enfrentado entreveros e mais entreveros e o cansaço o tomou. Sei que andou adoecendo. A garganta não cessava de obstruir, a irritabilidade ia e vinha e, às vezes perdurava. O sono entrecortado não era novidade, mas a insônia crescia e incomodava. E ele, aderindo aos remédios e ao cigarro, tornou-se o homem das sombras.
Um dia, indo de casa ao trabalho, o homem das sombras trombou com velho dono da quitanda que, furioso, gritava com um moleque buliçoso que dava cambalhotas entre caixas que havia empilhado na calçada. Logo a mãe apareceu para agarrar o braço do espevitado e arrancá-lo da rua. Foi quando o homem das sombras se aproximou do menino, afogou os cabelos de fogo e sorriu seu velho riso maroto.
Neste dia chegou ao trabalho derretendo tacanhices com argumentos mirabolantes. Os contratantes sorriram, acreditando que o publicitário arguto retornava sem avisar. Mas a alegria não duraria muito. Numa página qualquer da agenda ele havia anotado: nem Xavier, nem D’Arc. Talvez ensinar piruetas e malabares. E assinou Professor Traquinas.
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