Lá vem Maria

O MENINO DA PORTA DO BANCO

set 21, 2011 por

Descobri que o menino da porta do banco,
Aquele que recolhe das mesas fartas, as migalhas,
Pensa como meu filho,
Sente como meu filho,
Mas não sonha como sonha meu bem cuidado filho.

Descobri que o menino da porta do banco,
Aquele que recebe a piedade que destronou a justiça,
Argumenta como meu filho,
Raciocina como meu filho,
Mas não vai bem na escola como vai meu bem amado filho.

Descobri que a escola,
Que muito acredita em meu filho,
Não acredita no menino da porta do banco.

(Escrito em 2000 e dedicado aos meninos que, com meu trabalho, não consegui ajudar a resgatar)

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PIRUETAS E MALABARES

set 16, 2011 por

A mãe o chamava espevitado. A vizinha, traquinas. O homem do norte que tinha quitanda na esquina se referia a ele como “o buliçoso”. Mas eu, quando olhava aquele espeto de gente cruzando o pátio entre saltos e cambalhotas, via o sol explodindo entre nuvens.

Nunca parava. Enchia cadernos com criações que sobressaiam às lições. Expunha ideias esdrúxulas em meio as explicações e dúvidas sagazes que apontavam a estreiteza dos conteúdos acadêmicos.

Morava bem perto da escola e juro, não lembro vê-lo usar o portão. Chegava correndo à casa, jogava a mala para o quintal, batia uma das mãos no muro, atirava as pernas finas e longas para o ar e lá ia corpanzil magricelo para o outro lado.

Os cabelos negros que não deixava cortar balançavam, subiam, desciam se acomodando ao andar desengonçado, enquanto os olhos amendoados e irrequietos passeavam pelo entorno.

Espevitado, traquinas, buliçoso era também o dono do maior coração do mundo. Esse, o coração, vivia arranhado, porque mal cabia no tórax minúsculo. As coisas do mundo o indignavam. Não suportava ver alguém subjugado, maltratado ou ofendido que assumia as dores. Assumia e sofria as consequências. Revidava batendo portas, pintando monstrengos e rabiscando caricaturas. Mas logo esquecia os dissabores e seguia em frente, fazendo piruetas, saltando muros, interrompendo aulas com perguntas que incomodavam.

Não foi adolescente rebelde, apenas espevitado, traquinas e buliçoso. Acho que saltou alguma fase da vida porque logo era profissional criativo, requisitado e, liderança devastadora. Os colegas o queriam ao lado sempre que uma necessidade se tornava reivindicação. Do outro, os contratantes o desejavam longe de qualquer conversa. Mas sabiam que para afastá-lo teriam, também, que que abdicar dos seus devaneios que desembocavam em campanhas top de linha.

Ninguém espera que espevitado, traquinas e buliçoso mudasse, mas ele mudou. O primeiro sinal da estranha transformação apareceu durante uma reunião entre colegas e contratantes. Pouco falou, nada aceitou e ao final escreveu: estão sempre querendo um Joaquim José da Silva Xavier.O espaço vazio incomodou um e outro até que uma colega assumiu a liderança. Instantes depois ele registrava: enfim, conseguiram uma Joana D’Arc.

Os contratantes respiravam aliviados, mas o alivio não durou muito. Uma reunião para encaminhar novas campanhas resultou desastrosa. O homem de rosto afilado, não mexeu os cabelos e os olhos amendoados permaneceram fixos, como se atravessassem os apresentadores.

O publicitário, antes espevitado, traquinas, buliçoso havia enfrentado entreveros e mais entreveros e o cansaço o tomou. Sei que andou adoecendo. A garganta não cessava de obstruir, a irritabilidade ia e vinha e, às vezes perdurava. O sono entrecortado não era novidade, mas a insônia crescia e incomodava. E ele, aderindo aos remédios e ao cigarro, tornou-se o homem das sombras.

Um dia, indo de casa ao trabalho, o homem das sombras trombou com velho dono da quitanda que, furioso, gritava com um moleque buliçoso que dava cambalhotas entre caixas que havia empilhado na calçada. Logo a mãe apareceu para agarrar o braço do espevitado e arrancá-lo da rua. Foi quando o homem das sombras se aproximou do menino, afogou os cabelos de fogo e sorriu seu velho riso maroto.

Neste dia chegou ao trabalho derretendo tacanhices com  argumentos mirabolantes. Os contratantes sorriram, acreditando que o publicitário  arguto  retornava sem avisar. Mas a alegria não duraria muito. Numa página qualquer da agenda ele havia  anotado: nem Xavier, nem D’Arc. Talvez ensinar piruetas e  malabares. E assinou Professor Traquinas.

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SOBRE AS PEDRAS E AS PESSOAS….

set 14, 2011 por

Coleciono pedras.
Para que servem?                                                                                          
Isso eu não sei. Sei apenas que gosto de ver os aglomerados coloridos e de superfícies diversas. Lisas e brilhantes, ásperas e sinuosas ou rugosas e cheias de reentrâncias.
Tenho pedras das mais diferentes cores e tamanhos. Um amontoado de pedregulhos minúsculos, que só mostram seus detalhes com o apoio de lupas. Uma procissão de pedras maiores, nas quais vejo as diferenças sem debruçar-me sobre as mesmas. Azuis, verdes, rosas, amareladas, ferrugem e uma série de nacos escuros com mesclas variadas.

Comecei a guardar pedras durante uma viagem. O ônibus fez a parada rotineira para o lanche da madrugada. Desci e fui perambular no espaço reservado às quinquilharias vendidas como lembranças. Entre elas estavam as caixinhas com pedrinhas, catalogadas como semipreciosas. Depois do exame escolhi uma pela diversidade de cores. Outro passageiro que bisbilhava por ali contou que aquele comércio era uma forma de descarte de pedras de pouco valor. Suas estruturas traziam falhas que as desvalorizavam.

Quantos milhões de anos estão contados em uma pedrinha?
Qual a trajetória de um pequeno naco azulado?
Também não sei.

Pedrinhas podem ter sido parte de vulcões incandescentes e de montanhas volumosas. Quem sabe se foram modeladas pelas águas doces dos rios ou pela força das marés, rolaram por terras argilosas ou ficaram acomodadas nas superfícies áridas dos altiplanos?
Pedras têm histórias e trajetórias registradas na sua estrutura, na sua cor, na sua superfície.
Pedras contam histórias do nosso universo, mas não sabemos ler pedras. Talvez por isso as (des)valoramos pela presença de minúsculas desarmonias em suas estruturas.

Pessoas contam histórias e trajetórias através do corpo, da voz, dos gestos…
Contam a sua história.
Contam a histórias dos seus.
Contam a histórias dos humanos.

Para as pedras, as classificações são aceitáveis.   Para as pessoas, prefiro o respeito ao catálogo.

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DÁDIVAS

set 12, 2011 por

 

Sentaram na pedra morna e de lá fitavam a baía, o verde das montanhas e o casario à beira mar. Antes atravessaram o sambaqui cortado pelo caminho irregular e, sem pressa, subiram o maciço. Ela deixou-se ladear pelos meninos, que cansados das brincadeiras de rua, logo estenderam o corpo. Falaram do calor contido na pedra e passaram a seguir as raras nuvens que passeavam no azul iluminado pelo sol que, à direita, avançava para trás dos morros.
Àquela hora o vento deveria encrespar as águas da baía, mas não. A maré cheia chegou lenta e sem as tremulações comuns da primavera. Ondas mínimas batiam nas pedras, fazendo rolar os seixos. Ela seguia o vai e vem de cabeça vazia e em paz.
Os meninos seguiam as nuvens, a marola rolava seixos, o sol pintava o céu com tons de pérola, os barcos iam e viam. Os meninos, as ondas, o sol, os barcos, a cabeça vazia de pensamentos… Deitou um tempo ao lado dos filhos e aproveitou o morno da pedra até que um barco maior a desacomodasse. Ergueu o corpo e o seguiu a sumir entre ilhotas verdes. Não retornou. Mergulhou noutro tempo, saltando  para dentro de uma antiga embarcação. Do meio da baía vislumbrava a terra na qual pisaria sem regozijo. Já não suportava a sujeira, o espaço restrito dividido com tralhas, o trabalho exaustivo e incessante, a roupa surrada e grudenta, mas não acalentava esperança. Era um corpo duro e pronto para o confronto Ainda assim atentava para o verde ininterrupto que ia da orla aos picos da muralha, espreitando fuga.

O menino tocou o braço da mulher e a trouxe de outro tempo para a tarde de primavera sem vento. Apreciaram o pôr do sol avermelhado e depois seguiram de braços dados pelo caminho que cruzava o sambaqui. Mais tarde pensaria na estranha viagem que atravessara o sossego de sua tarde. Mais tarde, porque naquele momento dava vazão à dádiva dos abraços e da esperança.

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TEMPOS INÓSPITOS

set 8, 2011 por

Todos falavam das peripécias da infância, exceto ela. Acreditava que não havia o que contar. E se tentava achar algo, encontrava a expectadora de sempre. A menina que olhava os arroubos familiares à distância, que ia à missa e respondia ao padre apenas em pensamento, que ouvia as conversas da mãe e tecia conclusões nunca expressas, que aprendia com facilidade, mas não acreditava na própria competência.
Às vezes fugia para brincar entre crianças, na praça ou nas ruas poeirentas do lugarejo. Esses eram momentos únicos, guardados com carinho, mas não eram regra e sim exceções.

Seguiu incólume, até que, numa manhã preguiçosa, ficou na cama lembrando o dia em que saiu de casa. Primeiro emergiram os sentimentos doloridos que costumava evitar. Impotência, pânico, abandono. Depois recordou o abraço de despedida. O primeiro abraço que recebeu da mãe. Intrigada, percebeu que o abraço dado há décadas estava intacto. ilustração: Erly RicciLembrança vívida da surpresa que o ato materno causara. Lembrança que acionava as células e a fazia perceber o próprio corpo encourado e pouco receptivo.
Naquela manhã preguiçosa descobriu a dor que sua partida causara à mulher e a verdade do afeto expresso no abraço. Quis voltar no tempo, soltar o corpo, abraçar com intensidade. Como não era possível, respirou fundo, deu-se um abraço e pulou da cama.
Depois da primeira, outras manhãs instigaram recordações. Lembrou a calça rancheira vermelha, pespontada com linha grossa, que costumava arregaçar antes de arrancar o par de Conga azul e colocar os pés na rua de barro vermelho e grudento. Às vezes escorregava um pé e outro. Ia deslizando pelo trajeto entre a casa e o açougue, a casa e o bazar, a casa e a farmácia.

Também gostava de esquecer a sombrinha e ser surpreendida pelas chuvas torrenciais de verão. Depois se esgueirava para o quarto, em busca de roupa seca e ali ficava enredada com as estórias que os livros coloridos contavam.

Havia os intervalos entre as aulas, quando arrancava o guarda pó branco e corria pelo pátio ou cantava na brincadeira de rodas; os dias de circo, na companhia da mãe e o trapézio improvisado na garagem, onde se tornava estrela.
Noutra manhã preguiçosa, depois de tantos resgates, descobriu que nos tempos inóspitos da infância havia aprendido a ser sorrateiramente feliz.

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