Lá vem Maria

Julia

fev 18, 2016 por

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Noite de homenagens e Júlia era a estrela maior. Os anos longe dos palcos não a afastavam das lentes nem dos holofotes. Ela já não desejava lentes ou holofotes e quando a repórter perguntou se gostaria de ser mais jovem, alargou os cantos da boca, franziu os olhos e balançou a cabeça negativamente. A moça insistiu e a mulher, concisa e calma reforçou: nenhum minuto mais jovem.
Logo atrás, o homem que ela não podia ver, gritou: algum momento em sua vida ao qual queira retornar?
Júlia fez pausa, girou o corpo, procurou o rosto do indagador e disparou: nenhum. Ele teimou: não tem saudades do palco? Depois do categórico não, a mulher sorriu, movimentou os ombros e justificou: o palco já foi experimentado à exaustão. Deixemos os refletores aos que despontam.
Mais tarde, frente ao espelho, com os ombros arcados e o queixo apontado para o pescoço, suspirava. As fantasias não seguia porta à dentro. Havia cuidado para que invadissem a vida de quem não habitava as barras e as sapatilhas de ponta, mas já não as cultivava na intimidade.

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O Barqueiro

fev 13, 2016 por

barqueiro03Do barqueiro ninguém sabia o nome, se é que o tinha. Todos o conheciam, mas ignoravam sua história. Contavam que um dia, num ano distante, instalara ali sua barca e iniciara sua atividade. Desde então,  mostrava-se  incansável. Começava o trabalho ainda com estrelas no céu e seguia ao ritmo do rio até que o crepúsculo restaurasse o brilho das mesmas. Repetia o rito ininterruptamente, sem obedecer a quaisquer regras  que indicassem descansos regulares. Somente os percalços naturais o desviavam. Chuva torrencial e ventos fortes levavam-no ao ócio. A natureza, dizia, deve ser sempre respeitada. O enfrentamento nunca favorece o desafiante.
Os moradores da região aceitavam suas regras e usufruíam do beneficio oferecido. Com o tempo desistiram das perguntas e se algum desavisado insistia, as respostas eram sempre evasivas. Mas quando um dos embarcados desatava a falar de si, encontrava bons ouvidos. Bastava que alguém, atrapalhado com a vida,  aproveitasse a travessia para desabafar que o barqueiro sorria, franzindo o canto dos olhos e da boca. Depois, com voz mansa e monótona, contava uma de suas histórias com desfechos que, costumeiramente, causavam surpresa ao interlocutor. Histórias coloridas e belas,  talvez fruto de uma imaginação excessivamente fértil ou de uma vida intensa. Mas alguns de seus ditos eram repetidos com frequência. Melhor a dor que nada, dizia afável com o ouvinte. Cuide de sua dor com carinho, ela o faz vivo, completava em algumas ocasiões.

Às vezes, quando algum sofredor resistia, o homem franzia os olhos, estendia largamente a boca e dizia: Ser infeliz é uma escolha fácil. Difícil é estar satisfeito.
E assim, desafiando os interlocutores ou apenas sendo solidário, o barqueiro fazia  da travessia  sua vida. Ouvia dramas, pesadelos, histórias mórbidas e felizes; repetia suas frases e pronunciava conselhos. Como quem não espera chegar a qualquer outro destino, ia e vinha, aproveitando a companhia das estrelas, águas e nuvens.
Macon, poeta jovem, cheio de brilho e furor, chegou à barca numa tarde de chuva intensa e forte correnteza. O rio largo e sereno estava alterado. Passava feroz carregando folhas, galhos ou qualquer coisa que tocasse a água barrenta. Chegou apressado, querendo atravessar. De imediato interpelou o barqueiro, que sob um pequeno abrigo, aparentava contemplação.
– A barca está parada?
– Sim. É perigoso atravessar com o temporal.
– Espera longa?
– Talvez. Depende da força da chuva. Para quem tem pressa, melhor seguir rio acima.
– Na estrada barrenta?
– A estrada é ruim e tem ponte, pequena e arriscada. Mas com cuidado chega-se ao outro lado em hora e meia.
O poeta, inquieto, busca resolver a questão a seu modo. E seu modo não incluía enfrentar longo trecho de lama e caminhar sob a chuva forte. Além de que, desconhecia o trajeto.
– Sempre que chove a barca para?
– Se é chuva forte…
– Mesmo quando é passageira?
– Paro enquanto durar.
– E se chover durante uma semana?
– Espero.
– E as pessoas que precisam atravessar?
– Usam a estrada. Demora, mas é mais seguro.
– Nunca atravessou com chuva?
– Uma vez. Um menino ferido perdia sangue. Arrisquei. Travessia difícil, mas deu certo.
Volumosas baforadas tiradas com prazer do charuto escuro intercalavam as falas do homem. O rapaz levava as mãos aos cabelos escuros e grossos, as colocava nos bolsos da capa que cobria o corpo, estalava os dedos e retomava as perguntas. Sem delongas, o barqueiro tomou a rédeas da conversação.
– Compromisso urgente na vila?
– Não fico na vila. Retorno para a cidade.
– Alguém esperando?
O poeta gaguejou. Quis retrucar, dizer que não era da conta do homem. Respondeu a contragosto.
– O editor me aguarda. Tenho um bom livro…
– Huuum, – resmungou, franzindo a testa e voltando ao charuto.

O rapaz olhava o céu, o rio, a mata ao redor e suspirava. A urgência suplantava a razão e um matuto desconhecido apontava o desatino. Desconhecido e detestável. Mas não podia furtar-se ao fato de que com frequência agia assim.

O homem calou-se, dando atenção ao o charuto e Macon cuidou de tirar a capa molhada. Pendurou o apetrecho num pequeno gancho,  acomodou-se num tronco que servia de banco e lá ficou, olhando o rio, o céu, a mata e o matuto e suas baforadas lentas. O cilindro de tabaco descansava entre dedos, depois ia à boca que soltava vagarosamente a fumaça que que o poeta ia seguindo, seguindo, seguindo. Esqueceu a pressa e descuidado, observava o estranho grisalho, rosto com rugas que mais pareciam marcas de riso que de velhice, porte ereto e mãos finas e longas. Homem distinto dos caboclos da região.  Segurava o objeto com elegância rara, vista apenas em alguns salões da cidade.
– Um charuto?- perguntou o barqueiro. O poeta aceitou o oferecimento.
– Vicio?
– Posso viver sem eles.
– Por que não para?
– Não tenho motivos. E uma boa baforada aguça a meditação.
– Meditar é verbo desconhecido nessas paragens.
– Comum é matutar. Ainda carrego marcas.
–  Chegou há pouco tempo na região?
O homem riu com estardalhaço. Depois, corrigindo a atitude, respondeu com cortesia.
– Sequer lembro o ano cheguei.
– Saudades de antes?
– Dos lugares onde estive, guardo imagens enfumaçadas, mais nada.
– Mas os costumes permaneceram?
O homem sorriu. A leveza com que  expressões engavetadas vinham à tona provocava diversão e incômodo. Longe ia o tempo das discussões ardentes, da necessidade de expor a perplexidade frente ao mundo ilógico e injusto e da curiosidade incontida. O moço parecia recrutar o que havia doado ao rio.
– Então vai esperar – arriscou o homem.
– Acha que seguindo pela estrada economizo tempo?
– Tempo? Não. Não há como. O tempo será sempre o mesmo, tenha você pressa ou não. Cada coisa a seu tempo e cada uma dura o que tiver que durar. Nem mais nem menos.

-Não é bem assim – retrucou o poeta.

– É o que imaginamos. Mas o tempo desconhece pressa ou lentidão. Ele é tudo e não existe. Tudo e nada, simultaneamente.
Macon desconfiava. O estranho parecia desconhecer a luta travada fora dali, dia após dia.

Não saberia da angústia de cada vitória? Não conheceria o esplendor de cada ganho? Tão longe das cidades não haveria de sonhar com sua medonha loucura. Mas não desejava uma discussão. Preferiu o silêncio ao embate.
O barqueiro atirou uma pedra à poça d’água e apontando para os círculos que alargavam sucessivamente, indagou:
– Conhece o infinito?
O rapaz o olhou, esquivo. O outro,  ignorando a reação, continuou.
– Quem vive o cotidiano das cidades, aprende a igualar o inigualável. Tempo e o dinheiro, prazer e gloria, vida e fama. Pois ali está. Quer vasculhar o tempo? É só sonhar. Nele pode-se ir e vir. Soltar-se e voar. Seguir e voltar e novamente ir. Nada de alucinante ou amedrontador. Apenas círculos, simultâneos, sucessivos e constantes.
Para o poeta os círculos estavam adjetivados: devaneios de um solitário que caberiam na poesia, mas não na guerra editorial ou na briga pelo espaço na vitrine das livrarias.
– Acha loucura?
– Sequer sabe de onde venho.
– Pura ilusão. O corpo conta o que vivemos, o que pensamos, o que sonhamos.
Noutra situação a irritação irromperia em Macon. Mas ali, frente ao rio de forte correnteza e água barrenta, ainda que o  barqueiro o desnudasse, parecia  incontestável. Quis pensar um xingamento, mas desistiu. Voltou ao silêncio. Atirando pedregulhos ao rio, fugiu do olhar invasivo. Para que enveredar por caminhos obscuros? Estava bem, desenrolando seus fios e construindo  sua teia. Para que deixar que um matuto o desafiasse? Para que duvidar dos rumos da vida? Atendia às pressões do editor e acumulava vitórias. Gostava do brilho das noites de autógrafos, das entrevistas e matérias nos jornais. Estava nas listas de melhores do ano, as vendas cresciam e ele investia naquilo que acreditava ser tudo que desejava.
Cansado dos pedregulhos, o poeta afrouxou a guarda, prendendo os olhos no outro. Inalterado, o homem continuava apanhando pequenas pedras e as atirando, uma a uma, na mesma poça.
– Feche os olhos. Experimente os círculos – sugeriu em voz monótona.
Ainda que relutante, Macon obedeceu. O que simples seriação de círculos poderia provocar?
Olhou fixamente para a poça, seguiu um e outro círculo,  depois fechou os olhos. No escuro das pálpebras cerradas os círculos continuaram. Nasciam, alargavam, sumiam. Novamente nasciam, cresciam e sumiam. O poeta quis pensar concretudes do cotidiano, mas os círculos  entremeavam imagens e continuavam a  nascer, alargar e morrer.
Novo pensamento, nova interferência, novos círculos repentinamente nascendo, infinitamente crescendo. O volume da chuva aumentava.  O ruído ininterrupto, repetitivo, relaxante, incitava à  entrega.  O percurso de cada pingo, da nuvem ao solo, da nuvem ao rio, da nuvem a poça d’água. Minúsculas ondas sendo formadas no torno. Nascendo, crescendo, deformando. Outros pingos, outras ondas,  circulares, pequenas ou  enormes, misturando-se a outras, minúsculas e novas. Ondas que se formavam rapidamente. Ondas que cresciam lentamente.  Velocidade nula.  Tempo desfigurado.
O barulho de um trovão interrompeu a viagem e o poeta recobrou o controle. A  chuva caia com  fúria, o rio empurrava amontoados de cascalho e, ao lado, o estranho imóvel, sem abrir os olhos.
– Assustado com o devaneio?
O rapaz não respondeu. Fitou-o firmemente, mas não o definiu. Era cético, descrente em bruxos ou feiticeiros, mas intrigado, não  ignorava a viagem.
O barqueiro, abrindo os olhos, sorriu. Não contou nenhuma história, não proferiu nenhuma frase. Apenas sorriu e retomou o charuto. Macon o seguiu. Nada foi dito. Era só chuva torrencial e, depois,  amena. O vento ganhando leveza e o céu, luminosidade.
– A chuva está parando. Talvez possamos atravessar – apressou o rapaz.
– Veja a correnteza. Seria imprudente.
– Fosse prudente, não estaria aqui!
A voz não foi mais que sussurro e o barqueiro não contestou. Macon retomava a própria trajetória. Não tinha buscado aquelas paragens pelo simples prazer de estar ali. Planejava  transformar a experimentação em mais uma obra, em mais uma criação e talvez, em mais uma vitória. Havia traçado um roteiro semelhante a um círculo e estava para completá-lo. Matas virgens, plantações, criações de animais, e, principalmente, as pessoas dos lugarejos, que os poetas da metrópole não alcançavam. O jeito de viver daquela gente cabocla as conversas de armazéns e botequins ou o vai e vem contínuo e lento de quem não lia eram matérias brutas. A lapidaria e logo iriam colorir páginas de livros, jornais ou revistas. Faltava pouco para dividir a obra  com o editor de faro infalível. Mas o rio e seu barqueiro atravancavam o caminho.
– O que parece empecilho, pode  dádiva – voltou a interferir o homem.
– Dádiva?
– A conquista inesperada. O salto que ignorava e que acontece à revelia..
– Um enigma?
– Uma descoberta.
A estiagem trouxe a revoada de pássaros no céu que clareava. O barqueiro, quase inerte,  seguiu o bando.
– Belos pássaros. Basta que a chuva os deixe, ganham o céu. Sábios pássaros. Sempre sabem como e quando ir e vir.
Macon o ouviu sem reagir. O homem retornou aos pássaros e a inércia. O rapaz pensou em seguir pela estrada, mas desistiu. Tomou o charuto. Entre uma tragada e outra, seguia os círculos de fumaça.  Entre círculos, os pássaros voavam. Outros círculos, outros pássaros e os pensamentos submergiram. O poeta esqueceu o charuto. Segui as curvas das asas em suas trajetórias longas e livres. O ar inflou o peito, o corpo reagiu com leveza. Os membros ganharam suaves inclinações. Os músculos perderam o tônus, dando lugar ao voo. Cerrou os olhos e  viveu o pássaro. Do alto, sobrevoou o rio e a mata. Subiu mais e mais. Voltou, sobrevoou a si mesmo e desejando romper, chamou: Vem conhecer o infinito! Vem! É só desejo, sonho, entrega. Vem que é só o infinito, que ata e desata, transcende e amarra. Loucos e lúcidos, sensatos e disformes. Vem que é só dominar o ar, ir e voltar. Basta arriscar.
Macon arriscou e descobriu o desejo de se jogar nas águas do rio, de emergir buscando o ar para os pulmões e retornar ao céu. Descobriu o desejo quase incontrolável de entregar-se ao amor sem fazer perguntas. O limite entre entregar-se e perder-se era tênue e,  amedrontado, abriu os olhos e evitou as aves e o rio. Mais uma vez ocorreu-lhe caminhar rio acima. Talvez fosse mais prudente distanciar-se do lugar e do estranho.
– Se for agora vai chegar ao anoitecer – disse-lhe o barqueiro, ainda imóvel.
– Não posso permanecer aqui
– Tenho acomodações para dois. Amanhã já não terá correnteza e poderemos atravessar ainda com o alvorecer.
– Como pode saber?
– Já não há nuvens ao sul, de onde sopra o vento.
– Se o vento virar?
– Não há indícios.
O rapaz cedeu. Tomou a capa e a pequena bagagem e foi com o anfitrião pela trilha que desembocou num caminho bem cuidado, ladeado por flores e pedras. Serpentearam morro acima até o topo, onde uma pequena cabana de madeira bruta, plantada sobre meia dúzia de troncos grossos e irregulares, quebrava a paisagem. Num único vão, cortado por um pequeno balcão que marcava a cozinha,  havia um fogão à lenha, uma prateleira, poucas louças e panelas. Da varanda, no entanto, avistava-se o rio e o céu, atrelados à mata verde.
O poeta aproveitou o banho de água aquecida no fogão à lenha, experimentou o chá quente e comeu torradas com mel e queijo. Esqueceu dos temores, usufruiu da quietude singular.
– Difícil compreender como um homem urbano pode viver aqui.
O rapaz esperava resposta, mas o homem sequer balbuciou silaba. Soltou vagarosamente a fumaça presa nos pulmões.
– Não é daqui, nem de lugar semelhante.
A constatação não deixou brechas para fuga, então respondeu com singeleza.
– É certo que não sou homem dessas paragens. Não trabalho a terra, não interpelo o tempo pra que interrompa a chuva, nada armazeno para mim ou para outros. Mas também não desejo seu mundo – respondeu com singeleza.
– E o mundo dos lavradores?
– Para viver como eles é necessário mais força que a que me foi concedida. Então sou barqueiro e não produtor ou vaqueiro.
– Não tem desejo de voltar para as cidades?
– Para sobreviver em suas cidades necessito de agressividade que já  não disponho.
Macon dissecaria o homem, mas ele  encerrou o assunto com uma  resposta lenta e preguiçosa.
– Já não penso no lugar de onde vim nem naqueles por onde passei. Já não tenho passado que me oriente nem desejo que me conduza. É certo que fui jovem. Fui afoito e presunçoso. Pensava dominar  a verdade. Mas a vida, tinhosa como é,  fez-me solto em seu balanço.
– Esse balanço…
– Se quer saber dele, é só sentir vento e ouvir o rio.
Ao silêncio imposto, o poeta não  transgrediu. Foi  passear com o vento entre cheiros de flor e mato. O barulho do rio, semelhante à cantiga velha e gasta, carregou-o para a correnteza. Foi ter com as águas.  A impetuosidade cedeu à entrega e  a curiosidade ao desejo. Viajou entre pedras, impulsionado pela correnteza. Foi resgatado pelo pássaro e levado ao céu.  Mergulhou, submergindo, para em seguida, voltar ao ar e novamente ao rio. Ao retornar não soube do tempo. Sem dizer palavra, buscou a cama já preparada e  adormeceu.  Foi acordado pelo barqueiro no alvorecer e o seguiu rumo à travessia.
Sobre as águas do rio calmo, reflexos tímidos do sol acompanharam os navegantes. Na outra margem, já em terra firme, o poeta olhou o companheiro e sorriu. Transformado, deixava os olhos falassem de sua emoção. Era hora de despedida e o barqueiro atreveu-se a perguntar-lhe o nome.
– Macon – respondeu-lhe o rapaz. No rosto do barqueiro apontou palidez descabida, mas ele a ignorou e fez de um aceno sua despedida. Antes de partir o barqueiro ainda cravou os olhos no poeta. Curto instante no qual viu seus próprios olhos, seus afetos sua história. Voltou a sorrir, saudando a vida, seu balanço e suas artimanhas.

De uma das margens Macon, o poeta, partia, certo de que olharia a vida com olhos de pássaro. Da outra, Macon, o barqueiro, seguia rumo a cabana vazia. Nos tempos transcorridos ninguém ouviu suas histórias ou seus ditos. O sorriso nos cantos dos olhos e da boca não foi visto em lugar algum. Não voltou ao rio. Diziam que adoecera. Ele, no entanto, espreitava o jogo da vida e seu delicioso risco. Quieto e cauteloso, revivia as sessões de autógrafos, o rosto nos jornais, as recepções, as pessoas e antigas emoções.
A lua cheia retornava quando um novo barqueiro tomou o lugar. Do antigo, soube-se apenas que havia partido. Há quem acredite que o dono da travessia enveredou por antigos caminhos a procura de um jovem de nome igual ao seu, pretendendo desvendar-lhe o feitiço.

 

 

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DO AMOR, O MEDO

fev 5, 2016 por

(da peça Bar Brasilis) faces

Não, não tenho medo da morte.Tantos foram nossos encontros, que nos tornamos íntimos. Conheço suas metamorfoses com tamanha lucidez, que se fosse possível dizê-las, definitivamente me designariam louco.

Crê realmente que temo o escárnio? Não, não o temo. Em tantos jogos nos defrontamos que faço minhas suas artimanhas. Do escárnio conheço o ventre com tão louca profundidade, que se fosse possível mostrá-lo, me chamariam maldito.

O amor? (…)

Enfim celebras o que temo! (….)

No amor conheci tanta vida e emoção, que se fosse possível dividi-las entre os homens, me baniriam para sempre de seus convívios!

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A ENTREGA

jan 27, 2016 por

ciganosEra desatenta de si. Tão desatenta que vibrou a emoção que outros olhos desencadeavam sem perceber que pulsava aceleradamente. Foi preciso que os olhos do outro fossem também um corpo, num palco, a marcar a concretude dos sons, para que a própria demanda a chamasse.
Era desatenta de si. Tão desatenta que não alcançou o banalíssimo desejo a abrir a alma para vida.
Talvez a emoção acordasse as células, os olhos brilhassem e a voz denunciasse a alegria introspectada. Talvez o corpo exalasse cheiro de paixão desperta, mas ela, desconexa de si, brincou e sorriu sem mergulhar nos olhos que a incendiavam. Foi preciso depara-se com as imagens do outro para que a profundidade conflitiva daqueles olhos a confrontasse e ela, perplexa,  rompesse com o presente.
No presente, era desatenta de si. Tão desatenta que mergulhou na emoção de outro tempo. De um tempo que não conseguia precisar, apesar do êxtase.  Talvez do tempo de cigana desgarrada, que seduzia e encantava, dançando alucinadamente! E na alucinação, mergulhou  naqueles olhos profundos e entregou-se em todos os tempos possíveis.

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ALÉM DA ALFORRIA

jan 20, 2016 por

 

gaivotanaIlha1A liberdade ultrapassa a alforria e creio, dela prescinde.
Não é na alforria que a libertação se faz, mas ao contrário. De posse da última pode-se cavar a primeira com os recursos que o caminho dispõe.
Liberdade é um estado que explode na alma e invade o corpo na forma de alguma coisa que palavra não define. Pode surgir num repente, junto com a decisão que revoga a emoção ou que retira o impedimento do mergulho. Pode eclodir na madrugada, quando  cinco planetas ficam alinhados, ou numa manhã de sol exuberante do verão.

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