Lá vem Maria

ANTES DO AMANHECER – II

out 17, 2011 por

A chuva cessou na madrugada.

Antes do amanhecer antevejo o sol atravessando frestas,

dourando a borda das nuvens,

iluminando o cume das montanhas ao redor.

 

 

 

A chuva cesso na madrugada.

 

 

Antes do amanhecer a brisa mansa trepidara as folhas da palmeira,

os pássaros virão trilhar na árvore ao lado da janela,

os pescadores retornarão à praia com as redes fartas.

 

 

A chuva cessou na madrugada.

 

 

 

Antes do amanhecer reconheço que não haverá excesso de umidade adoecendo as plantas, nem excesso de sol queimando suas folhas.

A chuva cessou na madrugada.

Antes do amanhecer saúdo o recolhimento e a expansão imprescindíveis à vida em plenitude.

 

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ANTES DO AMANHECER

out 16, 2011 por

Antes do amanhecer há um dia a ser projetado.

Mas não hoje.
Hoje é dia de luto. Dia que antecede o renascer que ainda precisa ser tecido.

Antes do amanhecer  há o desejo à espera do reconhecimento.

Mas não hoje. Hoje é dia de descartar desejos mortos. Dia que antecede o emergir dos sonhos que ainda precisam ser moldados.

Antes do amanhecer de hoje, o silêncio que percorrerá o dia e talvez a noite.

Silêncio que dá vez a voz da alma e  impele o traçado do caminho que agora reconheço.

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OS ÓCULOS ESPELHADOS

out 6, 2011 por

 

No dia em que completou vinte e cinco anos comprou para si um par de óculos escuros e espelhados. Saiu da ótica satisfeita com o presente perfeito para seu rosto miúdo. Mas, escondido dos próprios pensamentos estava o desejo de que as lentes servissem de anteparo, que filtrassem o mundo, deixando passar apenas aquilo de pudesse dar conta. Não queria ser vidente, nem médium, nem adivinha ou ter poder sobre as pessoas. Bastava ter tranqüilidade para seguir adiante e organizar a vida.
Para que ver em demasia se não podia intervir? Para que ser invadida por pensamentos, dores, escuridões alheias se não tinha nas mãos o poder de resolução?

Creio que os óculos não foram suficientes para solucionar a questão e aos trinta e cinco anos estava à frente de uma médica, em busca de auxílio. Escolheu uma homeopata. Sabia que profissionais de outras especialidades não entenderiam sua queixa e alguns, inadvertidamente, a dopariam com seus mirabolantes comprimidos de tarja preta.
Perceptiva, não deixou escapar o riso enigmático que a médica escondeu ao ouvi-la dizer que precisava limitar a invasão dos sentimentos alheios. Mas frente à cumplicidade da mulher, escolheu seguir a risca o tratamento.

Não foram mais que uns dias até que descobrisse a causa do riso abortado: os próprios sentimentos, aqueles arremessados para o inconsciente, tomavam a superfície. O choro engolido e atravessado na garganta, o desamparo, a falta de ar provocada pelo soluço incontido, o medo, a insegurança, o desconsolo e o pânico. Momento a momento, sentimento a sentimento, passava ao longo do corpo, rumo à condição de simples memória.

Talvez os resultados fossem promissores. Já não precisava aprisionar seus monstros e podia, enfim, seguir sua trilha. Mas num dia de sol, quando descansava no banco de um parque, vendo ao lado uma menina franzina e calada tomou-lhe a mão. O gesto leve e simples deu-lhe acesso ao silencio quase absoluto daquele pequeno e escuro mundo. Não soube o que fazer.

Seguiu brigando com sua falta de anteparo. Marcou data para parar de sentir, ver e ouvir em excesso. E tanto tentou que um dia pareceu ter conseguido. E de tanto crer, esqueceu a própria sensibilidade.

Vivia uma vida igual a tantos quando começou a adoecer. Sentia verdadeiras descargas elétricas na cabeça; tinha espasmos de causa não identificada, insônia e irritabilidade incontroláveis.

Noutro aniversário, quando já marcava meio século de transito terrestre, recebeu de presente, um livro. E lá no meio, num parágrafo qualquer, estava assinalada a relação entre aqueles seus tantos sintomas e o bloqueio da intuição. E a intuição, às vezes louvada, às vezes desqualificada, era tratada naquele parágrafo sem grifo, como a capacidade superior, que um curador deve cultivar e aprimorar.

Rememorou os vinte e cinco anos de conflitos, lembrou as pessoas que, sem pestanejar, ajudou e outras, talvez em maior número, que hesitou, mas não prestou auxílio.

Enfim, retomou o que havia bloqueado, escolheu alongar a vida e dispor aos outros o presente que trazia em si.

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AMORES DE BRANCONA

out 1, 2011 por

Todos se referiam a ela como “a brancona”. Poderiam chamá-la de “a estranha”, “a esquisita”, “a reclusa” e qualquer dos apelidos refletiriam, com honestidade, sua condição. Mas na vila de pescadores todos eram morenos jambo ou negros, viviam expostos ao sol escaldante e à água salgada do imenso mar. Ela, ao contrário, dona de pele branca que rejeitava os intensos raios da linha do Equador, não se expunha.
Ganhou o apelido, riu quando a avisaram do adereço e continuou a cuidar do que deveria ser cuidado.

A brancona tinha sonhos que não compartilhava. Tinha projetos  a espera do tempo certo para germinar. Tinha, principalmente, dois imensos afetos, que apesar dos destemperos, cultivava no cotidiano.

O dia de afazeres começava antes das sete da manhã e seguia sem pausa até as sete da noite. E então, seus amores, que durante o dia, alimentava e vigiava nas brechas da labuta, ganhavam o primeiro plano.
Quando o mais novo dos meninos completou seis meses, decidiu que estava na hora de incluir pequenos passeios à vida de quase clausura. E sob a lua, saía pelo vilarejo, carregando o mais novo grudado ao peito, apoiado pelo apetrecho de pano e o mais velho atracado a uma das mãos.

No primeiro passeio a brancona ganhou nova designação. Passou a ser a “mãe do galeguinho”. E galeguinho era celebridade. O primogênito, tendo herdado a boa pele do pai, rodava a vila com ele, expondo os cabelos loiros que o sol havia prateado e fazendo admiradores por sua eloquência.
A princípio a brancona riu do novo título, mas não deixou de sentir incomodo pelo assédio ao filho, que achou excessivo. Temeu que a diferença de cabelo e pele desencadeasse presunção, mas não desistiu dos passeios noturnos. Todavia  impôs distância aos fãs do menino. Enquanto vencia as ruas, cumprimentava a todos com simpatia, mas nunca parava nas rodas de prosa, nem dava trela aos confetes de alguns insistentes.
Tomou como regra, seguir no embalo da brisa, até a sorveteria. Lá, continha o riso, vendo o menino de colo, avançar sobre o sorvete do irmão logo que o seu acabava. Achava exagero dar-lhe um sorvete inteiro, mas cedeu à gula do pequeno às reclamações do galeguinho.
No percurso de volta para casa, a parada no forró era obrigatória. Ficava à porta com o menor, enquanto dava ao outro, a chance de rodopiar na pista, até cansar.

Os filhos encerravam a noite na rede. Cada qual de um lado da mulher, que ao meio, cantarolava misturas de folclores e coisas inventadas, até que adormecessem.  Depois de colocar cada qual em sua cama, brancona gastava bom tempo cultivando a ternura desabrochada daqueles rostos doces. Só então, com a alma apaziguada ia alimentar os outros sonhos, para que ganhassem corpo na mesma medida que haveriam de crescer os seus meninos.

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O VALE DAS OLIVEIRAS

set 26, 2011 por

Eram muitos, mas não tantos que caracterizassem uma multidão.
Avançavam em fuga sem olhar para trás. Nenhum deles desejava reter na alma as desventuras sofridas.
Para onde seguiriam?
Nenhum deles sabia. O caminho, tomado ao acaso, cortava terra árida e tórrida. Mas marchavam, esperando dar com a brisa a balançar o verde brotado da terra. E junto ao verde, entre pedras, certamente haveria de escorrer água fresca e cristalina.
Maria seguia resoluta ao ritmo do menino que lhe agarrava o vestido roto. Num dos braços, a menina enrolada em panos leves. Noutro, a trouxa com parcas vestes recolhidas ao acaso.
Maria não era invencível. O longo percurso sob o sol impiedoso a exauriam. Ela fraquejava e à frente nada via senão terra morta. Desistiria, não fossem os olhos implorativos dos filhos e por eles, voltava à marcha.
João, que não tinha filhos nem roupas tomou a menina. Bem podia carregar a pequena e dar a mulher um pouco de ânimo. José, também solitário e sem posses seguiu o exemplo e cuidou da trouxa. Maria, agradecendo sem sorrir, tomou a mão do menino, oferecendo o conforto que a própria alma não dispunha.

Em terra estéril o sol se põe como em qualquer terra. A princípio a noite trouxe alento. Depois, o desconforto do frio incomum. E antes que tomasse para si as vestes, Maria falou a José, que desatou a trouxa e distribuiu o que ali havia. Noutros pontos, outras trouxas eram desatadas quando Pedro começou a partilhar o pão e Paulo a distribuir água, dosando para que todos pudessem amenizar a sede. Magdala seguiu Pedro, depositando em cada naco de pão, uma colher de mel. Outros e outros os imitaram.

O sol apontava vermelho e poderoso, quando o vento os tocou. Primeiro a pele, depois os ouvidos, com o zunzunar de folhas e galhos. Logo o mais alto deles pode ver o balanceio das copas. Ainda percorreram longa distância em caminho ressequido, mas à sombra das oliveiras cultivaram a vitalidade que a cortesia havia preservado.

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