Lá vem Maria

A Função Real das Escolas

jun 6, 2016 por

Uma noite, numa locadora, procurava filmes brasileiros. Havia poucos e eu conhecia todos. A justificativa, conhecidíssima: ninguém quer saber de filmes brasileiros.

O Brasil produz bons filmes. Caso o trabalho de divulgação beirasse aquele dos milhares de filmes do receituário padrão hollywoodiano, a situação não seria outra?

Não vamos estabelecer um debate a respeito da distribuição e divulgação dos filmes brasileiros e americanos, mesmo porque é fato que as distribuidoras que atuam no Brasil não são brasileiras e estão a serviço das grandes empresas do ramo.  E nosso assunto é educação.

E quando falamos de educação falamos de cinema, televisão, música, teatro, dança, artes visuais, literatura, história, geografia, matemática, física quântica… Mas nossas locadoras, nossos cinemas, nossos canais de televisão vivem entulhados dessas coisas de fórmula única, enredo repetitivo, violência nada gratuita (pois nos custa muito, em todos os sentidos). E nossos professores, pela formação ou pela condição financeira, raramente têm acesso a alternativas culturais.

Como podem alimentar as escolas com posturas críticas necessárias?

Atribuindo a escola a função de repassar conteúdos formais, estagnados, organizados em arquivos padrões, podemos dispensar a postura crítica. Mas se a tarefa inclui suporte à formação de pensadores que saibam usar conteúdos programáticos como base para a sua contínua aprendizagem, educadores críticos são fundamentais. E educadores críticos precisam realimentar-se continuamente. E realimentar-se da diversidade de olhares, das contradições, das contraposições.

Antes de perguntar se há no universo da educação brasileira espaço para estudantes questionadores é necessário perguntar se este sistema consegue acolher e alimentar educadores engajados, críticos, inovadores. Indo além: há interesse real na formação de professores e alunos críticos ou a busca limita-se a produção de bons técnicos?

 

De novo, não deixo uma bibliografia, mas um autor: Paulo Freire“.

 

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Madalena Freire e A Paixão de Conhecer o Mundo

maio 27, 2016 por

apresentação do livro Além das Montanhas Coloridas no FAMA-Arapoti

apresentação do livro Além das Montanhas Coloridas no FAMA-Arapoti

Decorrem 12 anos desde de meu afastamento da atividade de psicóloga educacional, mas bastou um evento – o FAMA, de Arapoti, Paraná – para que o desejo de compartilhar as experiências acumuladas tomasse o corpo e a alma. Desejo que, a partir de agora, transponho para a escrita.
Esse anseio foi aguçado, primeiro, pelo trabalho de João Bello e Susi Monte Serrat, que contou com a participação do músico Jeronimo Colbert Bello. Aparentemente eles fazem um show alegre, divertido e colorido. Desses espetáculos que nos incitam a cantar, dançar e alimentar as raízes. Mas na verdade é uma aula prática, recheada com os elementos que mais faltam no cotidiano escolar: o prazer e a criatividade.
Não imaginem que ao pontuar a ausência de alegria e criatividade no ambiente escolar, estou criticando professores ou equipes pedagógicas. Antes, tenho plena consciência de que esse formato enrijecido do processo tem bases no Brasil imperial e que quando estava em plena mutação, sofreu os efeitos da ditadura militar.
Não irei, neste texto, mergulhar na etiologia do problema. Abordarei alguns aspectos em artigos futuros. Mas, de imediato, indico o livro História da Educação no Brasil, de Otaíza de Oliveira Romanelli, que registra extensa e profunda pesquisa da autora.
Voltando a eclosão do desejo de compartilhar, o segundo desencadeador foi a apresentação do trabalho do artista Hélio Leites, pelo próprio. A arte de Hélio tem como matéria prima aquilo que jogamos fora todos os dias: caixinhas de fósforo, palitos, latinhas, entre outros. Enquanto ele mostrava objetos e falava do seu fazer artístico, ideias sobre a aplicação deste fazer no resgate do prazer de aprender, da auto estima, da capacidade de pensar criticamente e de criar invadiam o pensamento.
Não imagino que reverter a rigidez do ensino seja um processo simples. Comprometimento das equipes, capacitação continuada e presencial, além de estratégias para proteção das mudanças obtidas são imprescindíveis para fazer brotar alegria no ambiente escolar, desencadear condutas de respeito para com as diferenças individuais e permitir a criatividade e espontaneidade. E, é claro que baixos salários e sobrecarga de trabalho são barreiras adicionais. Mas também tenho convicção, fundamentada na experiência, que agregando prazer e alegria ao ato de aprender e ensinar, a vida dos profissionais envolvidos será positivamente afetada.
Foi neste contexto, em meio ao FAMA, junto com colegas escritores que lá estavam para apresentar suas obras, que lembrei de Madalena Freire e do livro A Paixão de Conhecer o Mundo.
Tão apaixonante quanto o nome, a obra traz a transcrição da experiencia da autora na Escola da Vila, em São Paulo. Relata o processo, mostra a aplicação do que chamamos práxis e os resultados obtidos. O prazer e a criatividade vivenciados contaminam cada página do livro, que parece escrito por crianças felizes.
Madalena apresenta um caminho. Há outros. Cada unidade educativa pode descobrir o seu.

Na galeria, fotos dos escritores apresentando seus livros aos professores da rede municipal de Arapoti.na primeira foto: Paulo de Jesus, Silzi Mossato, Sedinei Rocha, Desirée Cavallin Veloso e Francine Cruz. Na sequencia, João Bello, Hélio Leites, Susi Monte Serrat e Jeronimo Colbert Bello.

(para visualizar: clicar sobre a foto para abrir e repetir o clic para tela cheia)

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O MENINO DA PORTA DO BANCO

set 21, 2011 por

Descobri que o menino da porta do banco,
Aquele que recolhe das mesas fartas, as migalhas,
Pensa como meu filho,
Sente como meu filho,
Mas não sonha como sonha meu bem cuidado filho.

Descobri que o menino da porta do banco,
Aquele que recebe a piedade que destronou a justiça,
Argumenta como meu filho,
Raciocina como meu filho,
Mas não vai bem na escola como vai meu bem amado filho.

Descobri que a escola,
Que muito acredita em meu filho,
Não acredita no menino da porta do banco.

(Escrito em 2000 e dedicado aos meninos que, com meu trabalho, não consegui ajudar a resgatar)

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PIRUETAS E MALABARES

set 16, 2011 por

A mãe o chamava espevitado. A vizinha, traquinas. O homem do norte que tinha quitanda na esquina se referia a ele como “o buliçoso”. Mas eu, quando olhava aquele espeto de gente cruzando o pátio entre saltos e cambalhotas, via o sol explodindo entre nuvens.

Nunca parava. Enchia cadernos com criações que sobressaiam às lições. Expunha ideias esdrúxulas em meio as explicações e dúvidas sagazes que apontavam a estreiteza dos conteúdos acadêmicos.

Morava bem perto da escola e juro, não lembro vê-lo usar o portão. Chegava correndo à casa, jogava a mala para o quintal, batia uma das mãos no muro, atirava as pernas finas e longas para o ar e lá ia corpanzil magricelo para o outro lado.

Os cabelos negros que não deixava cortar balançavam, subiam, desciam se acomodando ao andar desengonçado, enquanto os olhos amendoados e irrequietos passeavam pelo entorno.

Espevitado, traquinas, buliçoso era também o dono do maior coração do mundo. Esse, o coração, vivia arranhado, porque mal cabia no tórax minúsculo. As coisas do mundo o indignavam. Não suportava ver alguém subjugado, maltratado ou ofendido que assumia as dores. Assumia e sofria as consequências. Revidava batendo portas, pintando monstrengos e rabiscando caricaturas. Mas logo esquecia os dissabores e seguia em frente, fazendo piruetas, saltando muros, interrompendo aulas com perguntas que incomodavam.

Não foi adolescente rebelde, apenas espevitado, traquinas e buliçoso. Acho que saltou alguma fase da vida porque logo era profissional criativo, requisitado e, liderança devastadora. Os colegas o queriam ao lado sempre que uma necessidade se tornava reivindicação. Do outro, os contratantes o desejavam longe de qualquer conversa. Mas sabiam que para afastá-lo teriam, também, que que abdicar dos seus devaneios que desembocavam em campanhas top de linha.

Ninguém espera que espevitado, traquinas e buliçoso mudasse, mas ele mudou. O primeiro sinal da estranha transformação apareceu durante uma reunião entre colegas e contratantes. Pouco falou, nada aceitou e ao final escreveu: estão sempre querendo um Joaquim José da Silva Xavier.O espaço vazio incomodou um e outro até que uma colega assumiu a liderança. Instantes depois ele registrava: enfim, conseguiram uma Joana D’Arc.

Os contratantes respiravam aliviados, mas o alivio não durou muito. Uma reunião para encaminhar novas campanhas resultou desastrosa. O homem de rosto afilado, não mexeu os cabelos e os olhos amendoados permaneceram fixos, como se atravessassem os apresentadores.

O publicitário, antes espevitado, traquinas, buliçoso havia enfrentado entreveros e mais entreveros e o cansaço o tomou. Sei que andou adoecendo. A garganta não cessava de obstruir, a irritabilidade ia e vinha e, às vezes perdurava. O sono entrecortado não era novidade, mas a insônia crescia e incomodava. E ele, aderindo aos remédios e ao cigarro, tornou-se o homem das sombras.

Um dia, indo de casa ao trabalho, o homem das sombras trombou com velho dono da quitanda que, furioso, gritava com um moleque buliçoso que dava cambalhotas entre caixas que havia empilhado na calçada. Logo a mãe apareceu para agarrar o braço do espevitado e arrancá-lo da rua. Foi quando o homem das sombras se aproximou do menino, afogou os cabelos de fogo e sorriu seu velho riso maroto.

Neste dia chegou ao trabalho derretendo tacanhices com  argumentos mirabolantes. Os contratantes sorriram, acreditando que o publicitário  arguto  retornava sem avisar. Mas a alegria não duraria muito. Numa página qualquer da agenda ele havia  anotado: nem Xavier, nem D’Arc. Talvez ensinar piruetas e  malabares. E assinou Professor Traquinas.

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O PRAZER DAS PALMAS RITMADAS

ago 22, 2011 por

Na década de sessenta, talvez no mesmo ano em que o prefeito de minha cidadezinha de interior teve que fugir para não ser preso, eu desfilava de branco. À frente, a fanfarra. Na sequência nós, alunos e alunas do Grupo Escolar Olavo Bilac e do Ginásio Professor Giampero Monacci.
As ginasianas usavam saias azul marinho e camisas brancas, mas nós íamos de guarda-pós brancos sobrepostos aos vestidos e acompanhados pelas meias três quartos, também brancas, e sapatos pretos.
Na época não atinava com o motivo da fuga do prefeito. Homem simpático, inteligente, simples, pacífico e pai de minhas colegas de escola. Mas o acontecido era fato quase periférico. Algo posto no mundo global ou, talvez, na borda, no limite entre meu universo e o universo maior. O desfile de sete de setembro, ao contrário, tinha relevância maior. Para ele ganhei sapatos novos, meias novas, guarda-pó novo. Queria fazer tudo certo, desfilar direitinho, mas a verdade é que de tempo em tempo recebia de uma das professoras uma leve cutucada e o aviso: acerte o passo.

Mais de quarenta anos depois descubro que guardo do homem e de sua família, imagens semelhantes as das fotos antigas e amareladas,  que com o tempo perderam a nitidez. Fotos que carreguei comigo enquanto descobria que a discordância é duramente penalizada desde o inicio do que designamos “civilização”. Descubro também um elo sutil, uma espécie de solidariedade camuflada dirigida ao homem e à sua família.

Mais de quarenta anos e descubro que vivi, secretamente, tentando “acertar o passo”.
Marchar ou bater palmas em harmonia com o grupo? Não, ainda não consigo. Não dou conta de dar constância aos intervalos, de manter a força nas batidas ou repetir uma sequência determinada. Mas descobri o prazer de bater minhas palmas ritmadas.
Parece supérfluo, esquisito, irrelevante?
Não para uma criança que em meio aos colegas, luta com o seu próprio corpo para acompanhar o exercício coletivo.

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