Lá vem Maria

OPS! defloculei os nós

dez 9, 2017 por

ilustração: Erly RicciAcordei estranha. Bem estranha.

Pulei da cama com leveza de quem perdeu quilos e quilos, e eu, que nem queria perder nada, corri pra frente do espelho. Olhei a estampa refletida e os quilos estavam no mesmo lugar. Os quilos e a leveza, também. Além dela, outros sintomas: maleabilidade, mobilidade, alegria, disposição e uma vontade doida de fazer uma coisa ainda mais doida: criar, criar, criar!

Não dava pra deixar rolar a coisa estranha que ia tomando corpo sem controle. Parei. Daria um basta e, sem demora, fui puxando os fios dos nós.

Ops! Ops! Cadê as rasteiras que levei? Não eram mais rasteiras e lá estavam só os fatos consumados. Naqueles momentos, nos lá de trás, serviram para alguma que não lembrava. Ah, mas tinham as pessoas, aquelas que me magoaram e com certeza elas dariam um jeito.

Ops! Ops! As mágoas já não estava lá. Um discernimento constrangedor aparecia de mãos dadas com as lembranças. Que era aquilo? O que aquela espécie de entendimento multifacetado que meu repertório não permitia, mas que insistia em ficar por ali? Ah, mas tinham as dores! as velhas e tão bem cuidadas dores!

Essas, eu creio, entraram em férias ou partiram sem qualquer aviso. A decepção, onde foi parar? Os feixes de frustração? As reclamações diárias? Os empecilhos, onde estavam?

A respiração fácil, o bem estar corporal, a fluidez das boas emoções: coisas esquisitas aconteciam num dia esquisito de esquisita celebração. O jeito foi acomodar-me ao imprevisto e esperar por um estorvo qualquer que confirmasse que aquele dia era meu. Atravanco, dificuldade, impedimento, impasse, obstáculo sempre acontecem no decorrer do trabalho e comecei. Primeiro, a água no batedor de barbotina. Nenhum problema. Depois, com a máquina em atividade, a argila seca adicionada aos poucos. Nem um espirro. Pra que tudo tivesse efeito previsto, um tanto de caulim e outro de filito. Nada escorregou para fora do batedor de barbotina. Em tempo contado, como deve ser contado o tempo dos dias desventurados, o creme espesso, tão espesso quanto vitamina de abacate, estava pronto. Pra finalizar, as gotas de defloculador de sempre.

Ops! Ops! Num instante, o creme virou líquido. Num instante o creme espesso, tão espesso quanto vitamina de banana, rodava ao impulso da hélice. Rodava fino, leve, cheio de mechas acetinadas, como deveria ser uma boa barbotina!

Ops! Ops! Alguma coisa aconteceu! Acho que defloculei os nós e desconfio que a desventurança não será recuperada!

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SOBRE O AMOR, A INTOLERÂNCIA E A AMEAÇA NO CÉU CURITIBANO

set 13, 2017 por

Hoje, 13/09/2017, foi o segundo e último dia de FLICAIXA Curitiba. Escolhi participar dos três eventos da tarde. Diversos, ricos e gostosos eventos. Conceição Evaristo e Luci Collin transbordando sensibilidade e quebrando as bordas limitantes dos estereótipos do feminino e do masculino. Xico Sá e Fabrício Carpinejar, entre o humor e emotividade, transitando pelas histórias pessoais e, consequentemente, de seus nichos sociais e do Brasil, sem deixar de lado a crescente intolerância. Mary del Priore abrindo outras escotilhas para a história do Brasil.
Entre o segundo e terceiro evento fui à praça Generoso Marques ver o discurso do Lula. De um lado o caminhão onde os discursos aconteciam – o do Lula foi o último. Do outro, o prédio do Sesc Paço da Liberdade. Entre os dois, as pessoas. Trabalhadores ligados a diferentes organizações.
Quando Lula chegou ao caminhão de som apareceu no céu e, pairando e rodando em torno do prédio do SESC, um helicóptero com luminoso de propaganda. Perdi o começo da “mensagem”. Não tenho certeza, mas parece que anunciava que um hotel prestava apoio a Polícia Federal, ao Ministério Público e a Lava Jato. Com humor sarcástico pensei que com o fracasso de bilheteria da peça publicitaria da Lava Jato – o filme A lei é para todos –  faziam propagando para o público do Lula. E, mais uma vez, amargavam fracasso. Lula falou pouco. Estava rouco. Mas enquanto falou, era nele que todos grudavam olhos e ouvidos.
Ouvi algumas pessoas comentando que o helicóptero estava tentando impedir que ouvissem o Lula. Confesso que  gostaria de ver a cena pelo mesmo ângulo. Mas  li o resto da mensagem. Li a referencia a “ladrões”. Li a ameaça de prisão.
Bom seria se fosse uma tentativa de publicidade para o filme ou de abafar a voz do Lula,  mas não era. Senti como ameaça explicita.
Voltei ao FLICAIXA, ouvi Mary del Priori e tomei o caminho de casa acalentando os ganhos nos eventos com os escritores . A amplidão do universo daquelas mulheres; a beleza daqueles homens que destrincham a intolerância enquanto deixam vazar o afeto de pais; o cuidado com o qual a pesquisadora puxa os fios da nossa história.
Voltei cultivando os ganhos, mas a ameaça não me abandona. Qual o nome do hotel? Quem autorizou? Por que autorizou? Para que autorizou?
Ainda considerei que se estão a ameaçar, estão assustados. Significa que a operação realmente não se mantém dentro da legalidade. Quem tem medo tem culpa. E quem tem culpa e medo não mede o que faz.
Continuo vendo, na ação, uma ameaça. E é como ameaça que acredito que deve ser investigada.

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A REDE

maio 30, 2017 por

TVQuerida Margarida,

Não sei o que imaginas, mas tenhas certeza que o longo tempo de silêncio não é sinal de esquecimento. Continuo a cultivar tua presença, ainda que à distância e, enfim, compreendo teus dias de recolhimento e silêncio.
Vivo um estranho trânsito e estou mais ensimesmado que de costume. Ainda nesta manhã foi necessário esforço para deixar a cama. Entrei, à revelia, num estado que, imagino, entre adormecido e em vigília. Neste período que não sei se de minutos ou horas, experimentei aconchego e tranquilidade. Estava noutro espaço e fui impelido a superar o desejo de lá ficar. Vivi a sensação de ter que deixar a casa que abriga e conforta e pisar no mundo das lutas e enfrentamentos. Compreendi que ainda tenho tarefas neste mundo e não posso ficar, definitivamente, do outro lado.
Desperto, busquei a ti. Colorida e risonha, transitavas entre as crianças que acolhes e acompanha. Papéis, tintas, colas, tesouras, tecidos, fios, criação e afeto a rodeavam. Lembranças do dia de sol, um dos primeiros da última primavera, quando a observava em uma de tuas aulas, no pátio da escola. Teu mundo está mais próximo daquele que vivi em transe que deste, no qual caminho agora.
Tenho olhado para esta realidade concreta com estranheza e susto. A televisão é um dos aspectos que mais causa desassossego. Estou a referir-me à rede que nada respeita, e que invade, indistintamente,  os espaços urbanos e rurais. Nas salas de espera de consultórios e laboratórios, nos bares e restaurantes, nos ônibus e táxis e até nas casas de vendem frutas e verduras, os aparelhos que repetem as mensagens da rede estão presentes. Nunca os encontro desligados. Com frequência é impossível ouvir com clareza os apresentadores e outros personagens, mas ainda assim, parecem funcionar como ópio ou morfina.
Sabes, Margarida, que o ruído subliminar dos eletrônicos traz-me desconforto e os evito. Mas, obrigado a dividir espaços com os aparelhos da rede, não pude furtar-me à consciência da incessante repetição dos conteúdos e, em particular, de um único ponto de vista, levado a extremos.
A meu ver, conviver com a repetição incessante já seria enlouquecedor. Mas, não bastasse, as versões apresentadas são obscuras, tendenciosas e carregadas de desesperança. Reconheço, nas entrelinhas dos anúncios e pretensos informativos, a mesma ideologia desnudada por Émile Zola em O Germinal. Mas se no romance naturalista, Zola trouxe à luz a morbidade dos mesmos, nos entretenimentos da rede, viajam incógnitos e se propagam como vírus e bactérias. Diferem no meio de propagação, mas não na essência. Atravessam séculos, servindo para os mesmos fins.
Creio que a absoluta ausência de silêncio e distanciamento não permitem que os efeitos sejam detectados. Ocorre o mesmo com a artificialidade de cada quadro, seja dos noticiários ou das declaradas ficções, nunca percebida.
O que, para mim, seria torturante, é hábito coletivo e compulsivo, desencadeado pelo ato de acionar o botão de controle. Todos os dias e noites, praticamente em todos os espaço, a rede está presente, consumindo preciosas horas de vida que poderiam ser de silencio, de leitura, de construção de arte e beleza ou de atenção dada ao outro.
Perplexo, recorro a ti e a tua lucidez. Diz-me, Margarida, como consegues transitar pelos vãos da rede e cultivar o afeto que a vejo distribuir aos meninos e meninas, com os quais divide sua arte?

 

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Sobre Tua Concepção Do Divino

abr 4, 2017 por

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Margarida de olhos açucarados, sonhei que estava a abraçar-te. Em sonho experimentei teu calor e tua ternura. Acordei a sentir-me renovado e capaz de enlevar-me com o sol da manhã, apesar dar dores do planeta.

Sabes que entendo este mundo como transito. Concebo que, na passagem por aqui, vivemos diferentes facetas de uma mesma realidade. Assim, ganhamos entendimento e ampliamos nossa compreensão do mundo e dos outros. Sabes também que não temo a morte. Mas carrego a impressão de que, partindo agora, deixaria tarefas inacabadas.

Retomo o assunto de tantas conversas movido pelo aparecimento de alguns sintomas que não descreverei. Provocaram preocupação e considerei buscar cuidados médicos. Titubeei. Oscilei entre o desejo de lançar-me ao universo e o de avançar com essa insensata viagem. Imaginava as paisagens, as pessoas, os ritos e crenças que talvez venha a encontrar e as contrapunha à liberdade de partir sem o corpo e suas limitações. Há experiencias do mundo concreto que ainda desejo. Mas confesso que a ideia de ir sem voltar a ver-te foi a propulsora da decisão tomada. Enfim, estou a cuidar-me. E hoje, ao abraçar-te em sonho entendi, que antes, preciso aprender a viver o amor e a entrega.

A cada trecho de estrada, cresce a certeza de que os laços de afeto, o pertencimento, o ato de cuidar e ser cuidado fazem a essência da vida. O propósito de cada um faz com que sejamos únicos. A realização desse propósito, no entanto, não nos obriga a abandonar o pertencimento. Compreendo que a evolução da consciência particular nos aproxima da consciência plena. Creio que, enfim, estou a aproximar-me do teu entendimento de Deus.

Talvez o que chamo de entendimento seja mais um equívoco. No entanto, crer que vislumbro os alicerces do acolhimento que encontrei em ti, traz-me alento. Seguirei sem religião, mas deixo para trás, o rótulo de ateu.

Todavia, a perplexidade com os descalabros da vida mundana continua a acompanhar-me. Neste período de adoecimento, vi-me obrigado à via sacra entre especialistas. As longas permanências em salas de espera, antes de desencadear ansiedade ou irritação, fez-me deparar com facetas do mundo que antes escapavam aos olhos de astronauta desgarrado. Em cartas futuras dividirei contigo essas reveladoras impressões.

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Saudades do que não vivi

fev 13, 2017 por

casalTenho saudades de ti, Margarida.

Tenho saudades do teu carinho e de tuas caricias.

Talvez possa chamar-me tolo, mas maiores são as saudades dos prazeres que não vivi.

Nas noites em tua companhia não furtei-me a conduzir os afagos e a induzir intimidades, às vezes, beirando a determinação. Parti desconhecendo a entrega.

Não creias, terna amiga, que escrevo lamentações. São apenas confissões e além delas, está o desejo de dar-te a saber que reconheço o mundo de ternura que existia ao lado.

Mas é tarde, Margarida. Tarde para impedir que a inteireza da entrega sucumba a indignação. Vivi a guerrear contra o roubo da vida. Ingênuo, não vi que a minha, eu entregava aos ladrões.

Continuo a olhar o mundo com a zanga dos desajustados, mas não posso furtar-me ao discernimento. Reconheço que fui pego em vil armadilha. Lutei com as armas dos ladrões, deixei que tomassem os sentidos e os sentimentos, e contaminassem sonhos e crenças. Dei-me a ira e a gana de vencer a batalha. Quem está  tomado a luta insana, não pode dar-se ao afeto.

Mas não é tarde, Margarida. Não é tarde para mudar as armas. Encontro na tua capacidade de resistir aos chamamentos da violência, os meios para barrar em mim, a vitória dos ladrões de vida.

Cultivo hoje, a força silenciosa que recebi de ti.

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