Lá vem Maria

A REDE

maio 30, 2017 por

TVQuerida Margarida,

Não sei o que imaginas, mas tenhas certeza que o longo tempo de silêncio não é sinal de esquecimento. Continuo a cultivar tua presença, ainda que à distância e, enfim, compreendo teus dias de recolhimento e silêncio.
Vivo um estranho trânsito e estou mais ensimesmado que de costume. Ainda nesta manhã foi necessário esforço para deixar a cama. Entrei, à revelia, num estado que, imagino, entre adormecido e em vigília. Neste período que não sei se de minutos ou horas, experimentei aconchego e tranquilidade. Estava noutro espaço e fui impelido a superar o desejo de lá ficar. Vivi a sensação de ter que deixar a casa que abriga e conforta e pisar no mundo das lutas e enfrentamentos. Compreendi que ainda tenho tarefas neste mundo e não posso ficar, definitivamente, do outro lado.
Desperto, busquei a ti. Colorida e risonha, transitavas entre as crianças que acolhes e acompanha. Papéis, tintas, colas, tesouras, tecidos, fios, criação e afeto a rodeavam. Lembranças do dia de sol, um dos primeiros da última primavera, quando a observava em uma de tuas aulas, no pátio da escola. Teu mundo está mais próximo daquele que vivi em transe que deste, no qual caminho agora.
Tenho olhado para esta realidade concreta com estranheza e susto. A televisão é um dos aspectos que mais causa desassossego. Estou a referir-me à rede que nada respeita, e que invade, indistintamente,  os espaços urbanos e rurais. Nas salas de espera de consultórios e laboratórios, nos bares e restaurantes, nos ônibus e táxis e até nas casas de vendem frutas e verduras, os aparelhos que repetem as mensagens da rede estão presentes. Nunca os encontro desligados. Com frequência é impossível ouvir com clareza os apresentadores e outros personagens, mas ainda assim, parecem funcionar como ópio ou morfina.
Sabes, Margarida, que o ruído subliminar dos eletrônicos traz-me desconforto e os evito. Mas, obrigado a dividir espaços com os aparelhos da rede, não pude furtar-me à consciência da incessante repetição dos conteúdos e, em particular, de um único ponto de vista, levado a extremos.
A meu ver, conviver com a repetição incessante já seria enlouquecedor. Mas, não bastasse, as versões apresentadas são obscuras, tendenciosas e carregadas de desesperança. Reconheço, nas entrelinhas dos anúncios e pretensos informativos, a mesma ideologia desnudada por Émile Zola em O Germinal. Mas se no romance naturalista, Zola trouxe à luz a morbidade dos mesmos, nos entretenimentos da rede, viajam incógnitos e se propagam como vírus e bactérias. Diferem no meio de propagação, mas não na essência. Atravessam séculos, servindo para os mesmos fins.
Creio que a absoluta ausência de silêncio e distanciamento não permitem que os efeitos sejam detectados. Ocorre o mesmo com a artificialidade de cada quadro, seja dos noticiários ou das declaradas ficções, nunca percebida.
O que, para mim, seria torturante, é hábito coletivo e compulsivo, desencadeado pelo ato de acionar o botão de controle. Todos os dias e noites, praticamente em todos os espaço, a rede está presente, consumindo preciosas horas de vida que poderiam ser de silencio, de leitura, de construção de arte e beleza ou de atenção dada ao outro.
Perplexo, recorro a ti e a tua lucidez. Diz-me, Margarida, como consegues transitar pelos vãos da rede e cultivar o afeto que a vejo distribuir aos meninos e meninas, com os quais divide sua arte?

 

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