TRILOGIA DA FÊNIX: A MENINA RUIM
Ainda não tinha dez anos quando revidou à bofetada do irmão de dezoito atirando copos e talheres em sua direção. A mãe desconsiderou a bofetada e para corrigir o mau gênio, impôs um castigo. Para não piorar as coisas a menina ficou calada, ouvindo os resmungos da mulher: pra quem será que essa criatura puxou pra ser tão ruim?
A mãe não falava de má índole, crueldade ou perversidade, que conduta do gênero a filha não tinha. Ao contrário. Era gentil com os bichos, cultivava um pequeno jardim que ela própria havia criado, nunca batia em crianças menores, evitava brigas com colegas de brincadeira. Mas revidava a tudo que lhe desagradasse, fossem palavras ou atos. E nestes termos, levava adultos de todas as idades ao constrangimento.
Para não piorar as coisas a menina ficou calada. Não contou a ninguém, que mesmo tomada de raiva, evitava acertar o irmão com os copos, os garfos e as facas que atirava. Se soubessem de seu segredo, a vida poderia ficar ainda pior. Melhor o castigo injusto que o risco eminente.
Ainda não tinha quinze anos quando, de ferro elétrico fumegante em punho, enfrentou o homem que ameaçava bater numa menina indefesa. Fez com que o ferro esbarrasse na mão do agressor para que soubesse de sua disposição. O homem vociferou, mas saiu de cena enquanto a mãe, que assistia, reafirmava sua crença na natureza ruim da adolescente. Estava exausta e não quis argumentar. Guardou para si o alivio que experimentou ao ver o homem ceder. Seria doloroso machucar uma pessoa, ainda que para evitar que machucasse uma criança.
Não tinha vinte anos quando se opôs aos familiares que ameaçavam expulsar um dos membros. Não conseguiu convencê-los da validade de seus argumentos, mas os imobilizou e obteve a suspensão da sentença. A mãe louvou sua ruindade e festejou a inteligência expressa na argumentação. Ela, no entanto, não mostrou conivência. Indignação e raiva a haviam induzido, mas também a exauriam.
Beirava os trinta anos quando surpreendeu funcionárias sob sua supervisão debatendo a seu respeito. Uma, recém chegada, falava das cismas impostas pelos comentários ouvidos. Outra, mais antiga testemunhava a respeito do apoio recebido. Não evitou a situação, fez piada com os títulos recebidos á revelia, deixou o grupo à vontade e partiu incomodada.
Completaria trinta e cinco anos quando, numa brincadeira de amigos secretos uma colega de trabalho, favorecendo a adivinhação, definiu seu amigo ou sua amiga como a pessoa mais respeitada ou temida da organização. Ela gritou o nome do presidente enquanto ouvia de todos os outros, seu próprio nome. Brindou à sua capacidade de ordenar atitudes apenas com sua presença, riu com os demais e partiu cansada de ser “uma pessoa ruim”. Semanas depois estava decidida a aparar os espinhos e dar vazão ternura, que acreditava enclausurada.
Tinha quarenta anos completos e passava por grande dificuldade financeira e de saúde. Era comum que a buscassem para apoio, para pedir favores, para apropriação de suas idéias e conhecimentos. De resto, estava sozinha. Aos pouco as capacidades de sonhar e criar embotaram, o corpo deformou e as dores o tomaram.
Urgia que descansasse, necessitava de tempo e lugar para regenera-se, mas principalmente sentia o desespero de ver-se desalojada de si.
Enfim, comemoraria quarenta e cinco anos revitalizada pelo encontro com um homem de gênio ruim. Para dar conta da convivência resgatou argumentos, poliu a indignação, apropriou-se das situações que instigavam sua raiva e entendeu que sua ternura, para florescer, precisava de suas farpas afiadas. Bastava que soubesse quando baixar a guarda.
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