Lá vem Maria

ENTRE DEUS E DEUS

mar 16, 2012 por

Malena cresceu. Mas antes que chegasse ao tamanho da mulher de agora, deixou o pequeno sítio e rumou com a família para a pequena cidade. E de lá, antes que o corpo ganhasse as formas do corpo da mulher de agora, rumou com a família para a cidade de médio porte. Não seguiu com os seus para lugar algum. Com o corpo do tamanho e formatos de agora, rumou sozinha para uma cidade estonteante, complexa e contraditória. Deixou para trás o mundo de Malena e foi erguendo, dia à dia, derrota à derrota, vitória à vitória o mundo de Maria Helena.

Da janela do décimo quinto andar a mulher Maria Helena acompanha o sol poente. Antes atirou a bolsa na poltrona, jogou os sapatos num canto da sala, espichou o corpo numa grande almofada e exercitou a capacidade de silenciar pensamentos. Adormeceu, acordou com sede, apanhou água e parou frente a janela para o mundo insensato da metrópole. Ainda mantinha o silêncio premeditado, mas uma nuvens intrometida abordou o sol e se instalou como se fosse um colorido chapelão mexicano.

No redondo do sol a mulher pintou o rosto da mãe, Benedita Maria, sombreado pelo chapelão de uso diário.

Benedita era dona da terra que a família cultivava. Era dona do gado que ordenhava ainda com o sol nascente; dos porcos que alimentava logo depois da ordenha; das galinhas que dava de comer logo depois de alimentar os porcos e da horta que costumava limpar e regar antes do anoitecer. Era mãe dos moleques a quem dava ordens enquanto dispunha alimentos e auxiliava na partida para escola matinal em descoloridas bicicletas. E enquanto os meninos estudavam Benedita corria com a arrumação da casa e com a comida que distribuía sobre a chapa do fogão à lenha. Os olhos avançavam do fogão ao quintal e do quintal à lavoura, mas os ouvidos não desgrudavam do rádio que lhe trazia o mundo.

Depois de alimentar filhos e marido e de dar brilho as panelas e bacias, Benedita enfiava uma calça velha sob o vestido, camisa de manga longa sobre o mesmo, um chapelão sobre a cabeça miúda, apanhava a enxada e seguia para as leiras do cafezal. Os homens começavam a capinha da cabeceira do sitio e Benedita, das proximidades da casa, de onde podia seguir os passos de Malena. Mas antes da capina vespertina, dia após dia, Benedita parava na casa ao lado e repetia o chamamento: embora Tiana.

Em dia de muito sol Tiana não ia a lugar algum e respondia sem sair da sombra: vô não mulher. Mas Benedita insistia: se não ajudar seu marido vai faltar comida pros seus meninos, mulher! E Tiana replicava: se faltar Deus provém.

Benedita sabia que não adiantava insistir, mas nunca deixava de contrapor: Deus já deu braços, pernas e saúde, o o resto é com a gente. E seguia com a labuta, ressentida pela dificuldade com as letras. Se soubesse ler, provaria para Tiana que Deus havia dado às pessoas tudo que precisavam para dar conta da vida. Bastava pedir a graça das boas escolhas. Era o que sempre dizia ao marido e aos filhos, quando reclamava do mato que tomava a roça dos meeiros.

O chapelão de nuvem cobriu o sol e apagou o rosto de Benedita. Maria Helena voltou ao almofadão, mas não exercitou o silêncio. Repassou a infância vivida entre plantas e bichos, o inicio da adolescência entre ruas poeirentas da cidadela que atendia aos agricultores, a juventude confusa, atropelada pelas novidades que o mundo injetava na cidade média. Repassou atropelos, desvios, tempos que não deixaram saudades e outros, impregnados de boas lembranças. Deu atenção às crenças que atravessaram a vida e  entendeu que se nunca tomou para si o Deus provedor propagado por Tiana. Nalgum ponto de sua trajetória desacreditou daquele Deus separado do mundo e ordenador das vidas dos seres pensantes, que a mãe cultivava sem grande alarde. Nalguns trechos andou desnorteada, sem referências ou crenças, colecionando dúvidas e inseguranças. Mas, nalguma parte do caminho começou a cultivar um Deus que chamou Consciência Cósmica e com ele, impregnou seu  mundo.

 

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2 comentários

  1. I pointed out in my second paragraph it does not merge the Deus Ex Human Revolution and Missing Link entrys.

  2. Silzi Mossato

    A concepção de Deus tende a ser coletiva, embasada nos preceitos de cada religião e da leitura que fazem de seus livros sagrados. Respeito cada uma. O texto Entre Deus e Deus narra uma trajetória particular, que resulta na construção individual de Deus enquanto Consciência Cósmica.

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