Lá vem Maria

Ações de acolhimento em “O Planeta é um só”

maio 3, 2016 por

foto de Erly Ricci

foto de Erly Ricci

Estávamos no meio da tarde quando ele sentou de frente para nós. No meu corpo apareceram  emoções desencontradas. Perplexidade, choque, desamparo, perda e ternura. A visível afetividade do interlocutor permeava as falas conscientes de quem viveu a crueza da guerra. Ele compartilhava suas experiências e eu continuava atônita, bombardeada por sensações de estonteamento,  ruptura e desproteção. Calculo que o narrador tenha a mesma idade de um de meus filhos. Meus filhos, que como milhares de outros da mesma idade, enfrentam as adversidades do nosso tempo e seguem, construindo suas histórias particulares, sem que isso lhes roubem a base familiar. Mas ele afirma que esse não é o seu lugar, que sua família ficou para trás, no lugar origem, para onde já não pode voltar. Ele é um sírio que talvez não tenha completado 30 anos. Não é o único e a Síria não é o único país de origem daqueles que conheci naquela tarde de sábado.
Era noite quando as atividades foram encerradas e deixei o local, impregnada de ternura e rijeza. Segui para casa com a alma a repetir que é preciso insistir, persistir, resistir, lutar. A vivência proíbe que venha a sucumbir.
Continuarei frequentando as reuniões do projeto “O mundo é um só” e confesso que precisei de duas semanas para falar do que ficou impregnado em mim. Mas não foi preciso mais que minutos de caminhada para reconhecer que uma nova pilastra interna emergiu da experiência.

“O Planeta é um só” é um projeto de acolhimento e troca de experiências, aberto tanto aos imigrantes quanto aos brasileiros. Conta com a parceria do Instituto Tibagi que sede espaço para as reuniões. Para participar basta ir as reuniões.

Para ter informações pode-se acessar a página do Facebook https://www.facebook.com/oplanetaeumso

Para conhecer um pouco mais, veja a matéria na página do Instituto Tibagi http://institutotibagi.org.br/2016/03/14/parceria-com-o-planeta-e-um-so-no-apoio-aos-migrantes-e-refugiados-no-brasil/

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O Sagrado Risco De Ser

abr 26, 2016 por

Preciso parar urgentemente com a cerveja,
porque depois da segunda,
a língua perde a trava,
falo o penso,
mostro o que sou.

Depois da segunda cerveja,
a ternura aflora,
a emoção ganha asas,
as regras perdem o sentido,
o senso comum vira pó.

Depois da segunda cerveja,
as amarras se dissolvem,
os medos cometem suicídio,
o orgulho tem sede de afeto,
o amor se liberta da monogamia.

Preciso parar urgentemente com a cerveja,
porque depois da segunda,
desato as correntes,
me coloco em risco.
No sagrado risco de ser.

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A Pedra

abr 22, 2016 por

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Um ônibus, dois ônibus, infinitos ônibus.
Lotados, apinhados.
A fila serpenteia, o menino passa a pedra, a pedra destroça o menino, que enfrenta o homem, que assume sua sina.

O ônibus, a fila, o menino, a pedra, o homem, a sina que já foi destino.
É tarde. Não há sentido algum.
Ainda que pudesse dizer que trago em mim o amor de muitas vidas,
do lado de fora a pedra destroça o menino, que enfrenta o homem, que cumpre a cega sina.

Nada tem sentido. Nenhuma norma satisfaz.
Qualquer convenção é minuscula a julgar o amor de muitas vidas que trago em mim.
Mas logo depois de minha sombra está o ônibus e a fila, a pedra e o menino, o homem e sua triste sina.

Um ônibus, dois ônibus, infinitos ônibus.
Vazios, desocupados.
Na rua desimpedida, o vento passeia, o menino amortece a dor, o homem carrega o menino, que enlaça o homem, que destroça a pedra, assumindo seu destino.

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O Segundo Mandamento

abr 19, 2016 por

A votação ainda estava acontecendo, mas as charges e piadas relacionadas já inundavam as mídias sociais. Creio que é pertinente afirmar que esse humor ácido foi a forma encontrada pelos brasileiros para extravasar a indignação provocada o circo de horrores da Câmara Federal, do dia 17 de abril de 2016.
Nós tivemos um revés. Dependendo do curso da história e, o Senado indica essa possibilidade, o revés pode se transformar em derrota.
Nós, no caso, não faz referencia direta ao PT, ao PCdoB, ao PDT ou a esquerda brasileira em geral. O pronome representa trabalhadores rurais, comerciais e industriais.  Indica pequenos agricultores,  prestadores de serviço,  microempreendedores individuais,  profissionais liberais que não atendem aos mais ricos,  profissionais da cultura e da educação. Está representando os Sem Terra, Sem Teto e outros tantos que não participam da divisão do bolo.
Mas, mesmo consciente dos riscos, não esperem ver em mim algum sinal de derrota. Aprendi com as plantas forrageiras do meu quintal que quando arrancadas já espalharam sementes e deitaram raízes para longe de caules e folhas. Plantas que as vezes parecem extintas, mas que depois da primeira chuva ou no fim do inverno, renascem e se alastram. E sempre haverá a próxima chuva, o próximo inverno e a próxima oportunidade.
Não nego que há possibilidade de morte pelo excesso de golpes. Mas sei também que as plantas se protegem e trabalham sem alarde, silenciosamente, compondo uma rede. Morrem aqui e nascem acolá.
Não esperem me ver derrotada frente ao descalabro. Antes declaro, sem mesuras, o meu orgulho de estar a esquerda das cenas lastimáveis, trazidas à público por uma casa que deveria nos representar.
Não me deixei derrotar depois de ver mais de trezentos parlamentares agindo como atores canastrões e repetindo justificativas patéticas, mal ensaiadas, que não enganariam nem aos próprios.
Antes, declaro sem medo, que enquanto eles descumpriam o segundo mandamento e tomavam o nome de Deus em vão, crescia a  minha convicção de que Deus é consciência plena, que as escolhas devem ser feitas em nome próprio e que o louvor só pode ser prestado mediante o exercício dos mandamentos.
Enquanto aqueles que deveriam proteger o país, jogam a nação aos predadores, em nome de suas religiões, declaro sem dúvidas, que se essa for a pratica de suas igrejas, prefiro orar no silêncio de meu quarto.
Não me coloquei derrotada depois da traição na votação das Diretas Já! E depois de assistir a essa nova traição, justificada pelas pessoas que se dizem “de bem”, com mentira de que atendem aos anseios populares, escolho estar à margem e aviso que nunca tiveram meu aval para falar em meu nome.
Não estive derrotada nem mesmo depois assistir um parlamentar acusado de inúmeros crimes, para quem a Procurador Geral da Republica pediu 184 anos de prisão, comandar um processo de impedimento. E também não estarei quando a mídia espúria do meu país gastar horas de seus noticiários e páginas de seus jornais e revistas com as denúncias sem provas, usadas para incitar a crença de que impedimento é necessário.  também não vou sucumbir frente a propaganda enganosa que pregou e pregará a ideia que a troca de presidente beneficiará o país,  quando,na verdade, atenderá apenas aos  interesses do grupo mais abastado do país. Isto, caso sobrevivam aos predadores que invadirão nosso território.
Não me coloco derrotada porque minha força independe das campanhas anti crença dessa mesma mídia. Sou imune a elas. Conheço seus artifícios e antes de dar-me ao desolamento, prefiro semear o que sei.
Não me deixo abater também por vivenciar a outra face do processo e o torno público. Meu ânimo tem vários motivos, mas destaco os principais. O primeiro foi verificar que aqueles que receberam meu voto o honraram. São parlamentares conscientes, conhecedores e respeitadores da Constituição Federal e capazes de denunciar as ações que a violam . São parlamentares que não precisaram submete-se, nem viver a sombra de mandantes espectrais.
Aqueles a quem confiei meu voto não pactuam com a entrega do solo e subsolo para as mesmas petroleiras que, em associação com a industria do armamento, dizimaram todo Oriente Médio e outros países em outros continentes.
Aqueles que escolhi para me representar fazem parte de um grupo não muito grande. No caso da Câmara Federal, o número não foi suficiente para barrar o golpe. Mas espero que sejam exemplo, que se multipliquem, que trabalhem incansavelmente para não deixar que os direitos trabalhistas sejam excluídos ou que as vozes das minorias seja caladas.
Tivemos um revés e temos o risco de que a situação se repita no Senado, mas não estive nem estarei derrotada, porque vivi esse processo em meio a uma multidão.  Pessoas, que mesmo perdendo a votação, continuavam a cantar “não vai ter golpe! ”
Uma multidão de gente de diferentes grupos sociais, das mais diversas vertentes culturais e diferentes idades, que seguiam a votação repudiando a farsa da maioria dos deputados e deputadas, com suas justificativas inventadas por algum marqueteiro medíocre que fez questão de inserir ideias expressas por Lula ao jornalista Glenn Greenwal. Uma multidão que comemorava cada voto contra o impedimentos e reforçava o voto de “vai ter luta!” Jovens, que de alienados não tem nada. Pessoas que com um terço de minha idade esbanja consciência.
Tenho esperança e a cada dia espalharei o que sei e buscarei o que meus parceiros sabem. Tenho esperança e a cada dia cuidarei das sementes e das raízes para que se alastrem e prevaleçam.

Não pensem que não tenho criticas ao governo do PT. Tenho muitas. De meu ponto de vista ocorreram erros e os principais foram de logística. Em 2005, quando os diversos grupos da velha mídia agiram em rede e atuaram sistemática e incansavelmente para minar o PT e, em particular àqueles que parecem, foram eleitos como os construtores das políticas de governo, nenhuma medida relevante foi tomada. Em pleno caos mundial, com o planeta a beira de um colapso ambiental e social,  a equipe de governo seguiu acreditando que o sistema capitalista tem jeito e pode atender as necessidades daqueles que não são donos dos meios de produção. Seguiu em rota de colisão com os próprios militantes, a maioria formados pelas ações nas bases do mesmo PT.

Mas se tenho críticas, também percebo que muito foi aprendido e que há chance de rever a rota. E se a equipe de governo entendeu que é necessário rever suas escolhas, os militantes, mesmo em desacordo com a gestão federal, entendendo o processo, se mantém em luta pelo estado democrático e pelo partido que criaram e ajudaram a crescer.

Também não imaginem que sou ingênua e que acredito que há partidos sem integrantes corruptos. Mas, se a corrupção no PT fosse sistêmica como querem nos fazer crer desde 2005,  com todo empenho de Lula,  o processo de impedimento estaria morto, soterrado sob negociatas. Mas o que assistimos e ainda estamos assistindo, prova exatamente o contrário.

 

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Mantra do Luto em Primeira Pessoa

mar 22, 2016 por

Tudo que alcanço tem um toque de mentira, outro de verdade;
uma dose de franqueza, outra de falsidade;
uma parte de loucura, outra de sanidade.

O mantra era companhia de muitas horas. Revia os anos, revirava a história.

Um dia me perdi do que era e andei à deriva, tentando reaver o rumo. Coisa idiota para pensar às portas da velhice.
Talvez fosse idiotice, mas o sono entrecortado sangrava a trajetória. Na encruzilhada, quase mulher, quase menina, errou a estrada. Ou seria essa a única alternativa?

Um dia me perdi do era. Mas qual dia? Naquele em que ouvi uma palavra desconhecida que nomeava uma profissão impensada e entendi que aquela era minha sina? Foi loucura, disparate, alucinação ou guia?
Talvez puro disparate, mas foi o que fez. Decidiu naquele instante, num banco de escola e no decorrer dos anos seguintes deixou morrer sua arte para seguir o destino.

Um dia me perdi do que era, mas qual dia? Naquele em que o medo pautou a atitude e, no lugar de correr ao encontro do afeto, fingi, dissimulei e menti? Deveria ser simples, sem temores, mas parecia amedrontador dizer venha, eu quero.
Talvez medo do amor, medo da dor, da frustração. Dissociou ali, naquele momento de insegurança e, no decorrer da vida seguiu irresoluta, sem dissolver a própria ambiguidade.

Um dia me perdi do que era, mas qual dia? Talvez naquele em que o corpo pulsava com desejo intenso, mas deixei que regras gritassem a decisão. Memória estúpida, que traz à tona sentimentos tão bem embalados e acomodados.
Talvez imensa estupidez, mas foi naquele momento, entre beijos e ternuras, que entortou a vida. Depois seguiu sem rumo, preenchendo vazios com emoções menores.

Um dia me perdi de mim. Mas qual dia. Talvez naquele em que experimentei o risco, achei forças para a violência e nela me fiz cactus. Foi como cactus que sobrevivi e salvei os sonhos que ainda trago em mim. Armar-se de guerra é insensatez, se a armadura torna-se pele.
Talvez seja insensatez ser cactus vida à fora, desconsiderando a seiva que os espinhos guardam. Mas foi o que fez. Defendeu-se de tudo e de todos até que outro cactus foi espelho para o seu.

Tudo que alcanço tem um toque de mentira, outro de verdade
uma dose de franqueza, outra de falsidade;
uma parte de loucura, outra de sanidade.

O mantra interrompeu o curso da história. Todos os momento, a um só tempo, tomaram o presente. E no presente nada havia além das fugas.

Estou de luto. Esquisitice afirmar que é o mais intenso e inconfessável dos lutos. Mais profundo e silencioso que qualquer um dos outros, vividos quando pessoas amadas partiram.
Talvez volte a ensimesmar para depois retomar a armadura. Mas agora estou cansada da luta, da labuta, cansada de guerrear. Tenho sono, vontade de estar fora do mundo, de descansar. Entre imagens, visagens e memórias quero o desligamento, a plenitude sem fantasias e sem promessas. Principalmente sem as promessas vazias, que reconheço no mantra:

Tudo que alcanço tem um toque de mentira, outro de verdade;
uma dose de franqueza, outra de falsidade;
uma parte de loucura, outra de sanidade.

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Desculpa

mar 19, 2016 por

Há poemas que nos falam a alma e nos acompanham anos ou décadas. Desculpa, de Maurício Távora está nesta minha lista. Não sei se o autor teve outros livros publicados. Conheço um pouco de sua história no teatro, em Curitiba, mais especificamente, no Guaira.

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Os loucos que me perdoem,
mas a distância é fundamental.

Não é, Poeta?

E se ela está num copo de uisque,
melhor, é mais legal,
com garantia constitucional.

 

Os loucos que me perdoem,
mas o mais-que-perfeito,
esse que não se arrisque
e evite sempre ficar por perto.
Que apague o olhar pretensamente esperto
e vá dar voltas na avenida,
de paletó e gravata.
E que não esqueça a graxa
no sapato, o perfeito nó em cada pé,
o sorriso de lata, a barba feita –
esquerda, direita, esquerda, direita!
Felicidades migo.
Desculpa não ir contigo,
mas acontece que não vais mais,
desde aquele dia que descobristes
o gostoso costume antigo
de ficar.
De ficar – como se diz? – de ficar bem.

Os loucos que me perdoem,
sinceramente,
se com eles não consigo ir também.

Maurício Távora
de VOAVIDA Poesias

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