TEMPOS INÓSPITOS
Todos falavam das peripécias da infância, exceto ela. Acreditava que não havia o que contar. E se tentava achar algo, encontrava a expectadora de sempre. A menina que olhava os arroubos familiares à distância, que ia à missa e respondia ao padre apenas em pensamento, que ouvia as conversas da mãe e tecia conclusões nunca expressas, que aprendia com facilidade, mas não acreditava na própria competência.
Às vezes fugia para brincar entre crianças, na praça ou nas ruas poeirentas do lugarejo. Esses eram momentos únicos, guardados com carinho, mas não eram regra e sim exceções.
Seguiu incólume, até que, numa manhã preguiçosa, ficou na cama lembrando o dia em que saiu de casa. Primeiro emergiram os sentimentos doloridos que costumava evitar. Impotência, pânico, abandono. Depois recordou o abraço de despedida. O primeiro abraço que recebeu da mãe. Intrigada, percebeu que o abraço dado há décadas estava intacto. Lembrança vívida da surpresa que o ato materno causara. Lembrança que acionava as células e a fazia perceber o próprio corpo encourado e pouco receptivo.
Naquela manhã preguiçosa descobriu a dor que sua partida causara à mulher e a verdade do afeto expresso no abraço. Quis voltar no tempo, soltar o corpo, abraçar com intensidade. Como não era possível, respirou fundo, deu-se um abraço e pulou da cama.
Depois da primeira, outras manhãs instigaram recordações. Lembrou a calça rancheira vermelha, pespontada com linha grossa, que costumava arregaçar antes de arrancar o par de Conga azul e colocar os pés na rua de barro vermelho e grudento. Às vezes escorregava um pé e outro. Ia deslizando pelo trajeto entre a casa e o açougue, a casa e o bazar, a casa e a farmácia.
Também gostava de esquecer a sombrinha e ser surpreendida pelas chuvas torrenciais de verão. Depois se esgueirava para o quarto, em busca de roupa seca e ali ficava enredada com as estórias que os livros coloridos contavam.
Havia os intervalos entre as aulas, quando arrancava o guarda pó branco e corria pelo pátio ou cantava na brincadeira de rodas; os dias de circo, na companhia da mãe e o trapézio improvisado na garagem, onde se tornava estrela.
Noutra manhã preguiçosa, depois de tantos resgates, descobriu que nos tempos inóspitos da infância havia aprendido a ser sorrateiramente feliz.
Lindo texto mãe!
muito bom, não há nada para retocar.
Vai ganhar uma ilustração sua?
Com carinho, aos meus filhos queridos.
Pronto! agora temos a ilustração do Erly.