Lá vem Maria

DETALHES E SINGELEZAS

out 26, 2011 por

Era uma viagem curta e certamente seria monótona e repetitiva. Cerca de hora e meia de avanços e paradas até que chegasse ao destino de sempre. Ela, que gostava de rever pontos da paisagem, sentou no primeiro banco após a catraca e esperou que o ônibus corresse entre chácaras, vilarejos e mata fechada. Olhava a paisagem, olhava as pessoas, e a paisagem e outras pessoas, até que um detalhe do corpo de um passageiro a entreve: as orelhas. Levou as mãos às suas, tocou os pequenos brincos, sentiu o que definia como grandes extremidades soltas e voltou a examinar as pequenas e interessantes orelhas do desconhecido. Os lóbulos, grudadas à pele da cabeça, não seguiam retos como aqueles das orelhas que até então conhecia. Faziam interessantes curvas, subindo ligeiramente e apontando para frente e para baixo. Singelos lóbulos. Belas orelhas que bem podiam receber delicados brincos que as ressaltassem. Orelhas únicas que talvez, em tempos de infância ou adolescência, tivessem causado desconforto ao portador. No entanto poderiam dar maior suavidade a qualquer rosto.
Seguiria entre orelhas e orelhas não fosse a quase menina grávida que entrou e permaneceu em pé no corredor. Levantou para ceder o lugar. Fez com prazer, retribuindo a gentileza recebida de tantos, nos tempos em que aguardava a chegada dos filhos. Lembrou do menino potiguar que décadas antes havia apanhado suas sacolas e carregado bairro afora, sem nada pedir em troca. Talvez agora carregasse outras sacolas, enquanto via crescer o ventre de sua companheira. E o pescador idoso, que um dia tomou o neto no colo para que cedesse o lugar na condução lotada, inda estaria vivo?
Empurrada pelos passageiros apanhados pelo veiculo, acabou acomodada ao lado de um casal de idosos. Olhou os chinelos de dedo nos quatro pés, percebeu as roupas gastas e amassadas, fitou os rostos ásperos, marcados pelo tempo e pelo sol até que as mãos, delicadamente entrelaçadas a prendesse. Sorriu sem dominar a expressão. E sorrindo encontrou os olhos brilhantes do homem de aspecto rude, que frente ao encantamento expresso, foi contando que a companheira, então doentinha, precisava de seus cuidados. E interrompeu a confissão para ajudar a mulher a retirar a blusa que sobrepunha o vestido largo e ajeitar delicadamente um e outro lado da roupa e alinhar fios de cabelos que atingiam a face. Concluído o cuidado, voltou a falar com parcimônia e a enlaçar os dedos da mulher.
Era uma viagem curta. Poderia ser monótona e repetitiva, mas no espaço restrito havia um homem com orelhas de traçado singular, uma mulher muito jovem acariciando a vida que o ventre protegia, um homem simples, de quase setenta anos cuidando devotamente de sua parceira.

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