O INDECIFRÁVEL
Do pico da montanha o indecifrável olhava o mundo. Tinha a incumbência de descobrir o sentido da designação dada a uma classe de habitantes: os seres racionais. E lá do topo viu alguns cultivando flores e perguntou: porque cultivá-las se bastava deixar que a natureza do lugar seguisse seu curso e florescesse a seu modo? Era estranho, mas apesar da contradição, criavam beleza e harmonia, propiciando, a si e seus semelhantes, bem estar e equilíbrio. Registrou sua primeira impressão: há na racionalidade farpas de ambiguidade.
O indecifrável também atentou para os que plantavam alimentos. Frutas, verduras, legumes, cereais. Antes, punham abaixo as matas que lhes proviam, mas, apesar do disparate, cuidavam de alimentar a si e aos outros. Assim os racionais obtinham força para cumprir suas jornadas.
Teria registrado a impressão. Desistiu ao perceber que alguns inventavam venenos, jogados sobre os mesmos alimentos. Ficou confuso. E a confusão aumentou ao ver que um grupo apanhava para si o resultado do labor de tantos, exigindo, para disponibilizar aos outros, altas compensações. E, não raramente, estoques apodreciam enquanto semelhantes definhavam, com fome.
Antes que atinasse com o propósito de tais absurdos, vislumbrou guerras de inumeráveis escalas. E também reconstrutores, cuidadores, protetores, apaziguadores.
O indecifrável deixou o pico da montanha e na tentativa de concluir a tarefa, buscou refúgio nas nuvens. Depois de debruçar-se demoradamente sobre a questão, pontuou: racionalidade implica em destruir o perfeito e recriar à própria semelhança, com infindáveis imperfeições.
A incumbência parecia concluída, mas o indecifrável retomou os apontamentos para um registro ao pé da página.
O desafio maior dos indefiníveis seres racionais é manter a crença, enquanto buscam o reencontro com a perfeição destruída.
Muito bom o texto!