BOA PARTILHA
Cresceu à mercê dos desabafos maternos: vida dura a de mulher; um inferno; trabalho que nunca cessa, descanso que nunca é suficiente; vida de escrava; mais uma encarnação, só se for pra ser homem.
Cresceu à mercê do desencanto, mais cultivando a esperança de fazer diferente.
Cresceu, partiu, namorou, colecionou relações confusas e depois de um acordo de boa partilha, casou.
Um dia a mãe adoeceu e a receberam para que fosse cuidada. Numa manhã como tantas, enquanto ele guardava o pão e ela entulhava a louça na pia a mãe sussurrou ao ouvido: ele não se importa com essa bagunça? Deu com os ombros antes de revidar: ele tomou do mesmo café.
Noutra manhã, ele tomava banho, ela ajeitava o cabelo e da porta do quarto, novo fio de voz materna: seu marido não briga vendo essa cama desarrumada? Ela suspirou e encarou a mulher antes de responder: ele dorme na mesma cama, sai e chega no mesmo horário.
A mãe partiu e o casamento acabou algum tempo depois que ela, acelerando o passo começou a arrumar a cama enquanto ele tomava banho, lavar a louça enquanto ele seguia o primeiro telejornal e ajeitar roupa e cabelo usando o espelho do elevador.