OS ÓCULOS ESPELHADOS
No dia em que completou vinte e cinco anos comprou para si um par de óculos escuros e espelhados. Saiu da ótica satisfeita com o presente perfeito para seu rosto miúdo. Mas, escondido dos próprios pensamentos estava o desejo de que as lentes servissem de anteparo, que filtrassem o mundo, deixando passar apenas aquilo de pudesse dar conta. Não queria ser vidente, nem médium, nem adivinha ou ter poder sobre as pessoas. Bastava ter tranqüilidade para seguir adiante e organizar a vida.
Para que ver em demasia se não podia intervir? Para que ser invadida por pensamentos, dores, escuridões alheias se não tinha nas mãos o poder de resolução?
Creio que os óculos não foram suficientes para solucionar a questão e aos trinta e cinco anos estava à frente de uma médica, em busca de auxílio. Escolheu uma homeopata. Sabia que profissionais de outras especialidades não entenderiam sua queixa e alguns, inadvertidamente, a dopariam com seus mirabolantes comprimidos de tarja preta.
Perceptiva, não deixou escapar o riso enigmático que a médica escondeu ao ouvi-la dizer que precisava limitar a invasão dos sentimentos alheios. Mas frente à cumplicidade da mulher, escolheu seguir a risca o tratamento.
Não foram mais que uns dias até que descobrisse a causa do riso abortado: os próprios sentimentos, aqueles arremessados para o inconsciente, tomavam a superfície. O choro engolido e atravessado na garganta, o desamparo, a falta de ar provocada pelo soluço incontido, o medo, a insegurança, o desconsolo e o pânico. Momento a momento, sentimento a sentimento, passava ao longo do corpo, rumo à condição de simples memória.
Talvez os resultados fossem promissores. Já não precisava aprisionar seus monstros e podia, enfim, seguir sua trilha. Mas num dia de sol, quando descansava no banco de um parque, vendo ao lado uma menina franzina e calada tomou-lhe a mão. O gesto leve e simples deu-lhe acesso ao silencio quase absoluto daquele pequeno e escuro mundo. Não soube o que fazer.
Seguiu brigando com sua falta de anteparo. Marcou data para parar de sentir, ver e ouvir em excesso. E tanto tentou que um dia pareceu ter conseguido. E de tanto crer, esqueceu a própria sensibilidade.
Vivia uma vida igual a tantos quando começou a adoecer. Sentia verdadeiras descargas elétricas na cabeça; tinha espasmos de causa não identificada, insônia e irritabilidade incontroláveis.
Noutro aniversário, quando já marcava meio século de transito terrestre, recebeu de presente, um livro. E lá no meio, num parágrafo qualquer, estava assinalada a relação entre aqueles seus tantos sintomas e o bloqueio da intuição. E a intuição, às vezes louvada, às vezes desqualificada, era tratada naquele parágrafo sem grifo, como a capacidade superior, que um curador deve cultivar e aprimorar.
Rememorou os vinte e cinco anos de conflitos, lembrou as pessoas que, sem pestanejar, ajudou e outras, talvez em maior número, que hesitou, mas não prestou auxílio.
Enfim, retomou o que havia bloqueado, escolheu alongar a vida e dispor aos outros o presente que trazia em si.
Porque o caminho era aproveitar o que tinha como dom, e não lutar contra ele.
Lindo texto!
As vezes precisamos de meio século para aprender.