Lá vem Maria

Mantra do Luto em Primeira Pessoa

mar 22, 2016 por

Tudo que alcanço tem um toque de mentira, outro de verdade;
uma dose de franqueza, outra de falsidade;
uma parte de loucura, outra de sanidade.

O mantra era companhia de muitas horas. Revia os anos, revirava a história.

Um dia me perdi do que era e andei à deriva, tentando reaver o rumo. Coisa idiota para pensar às portas da velhice.
Talvez fosse idiotice, mas o sono entrecortado sangrava a trajetória. Na encruzilhada, quase mulher, quase menina, errou a estrada. Ou seria essa a única alternativa?

Um dia me perdi do era. Mas qual dia? Naquele em que ouvi uma palavra desconhecida que nomeava uma profissão impensada e entendi que aquela era minha sina? Foi loucura, disparate, alucinação ou guia?
Talvez puro disparate, mas foi o que fez. Decidiu naquele instante, num banco de escola e no decorrer dos anos seguintes deixou morrer sua arte para seguir o destino.

Um dia me perdi do que era, mas qual dia? Naquele em que o medo pautou a atitude e, no lugar de correr ao encontro do afeto, fingi, dissimulei e menti? Deveria ser simples, sem temores, mas parecia amedrontador dizer venha, eu quero.
Talvez medo do amor, medo da dor, da frustração. Dissociou ali, naquele momento de insegurança e, no decorrer da vida seguiu irresoluta, sem dissolver a própria ambiguidade.

Um dia me perdi do que era, mas qual dia? Talvez naquele em que o corpo pulsava com desejo intenso, mas deixei que regras gritassem a decisão. Memória estúpida, que traz à tona sentimentos tão bem embalados e acomodados.
Talvez imensa estupidez, mas foi naquele momento, entre beijos e ternuras, que entortou a vida. Depois seguiu sem rumo, preenchendo vazios com emoções menores.

Um dia me perdi de mim. Mas qual dia. Talvez naquele em que experimentei o risco, achei forças para a violência e nela me fiz cactus. Foi como cactus que sobrevivi e salvei os sonhos que ainda trago em mim. Armar-se de guerra é insensatez, se a armadura torna-se pele.
Talvez seja insensatez ser cactus vida à fora, desconsiderando a seiva que os espinhos guardam. Mas foi o que fez. Defendeu-se de tudo e de todos até que outro cactus foi espelho para o seu.

Tudo que alcanço tem um toque de mentira, outro de verdade
uma dose de franqueza, outra de falsidade;
uma parte de loucura, outra de sanidade.

O mantra interrompeu o curso da história. Todos os momento, a um só tempo, tomaram o presente. E no presente nada havia além das fugas.

Estou de luto. Esquisitice afirmar que é o mais intenso e inconfessável dos lutos. Mais profundo e silencioso que qualquer um dos outros, vividos quando pessoas amadas partiram.
Talvez volte a ensimesmar para depois retomar a armadura. Mas agora estou cansada da luta, da labuta, cansada de guerrear. Tenho sono, vontade de estar fora do mundo, de descansar. Entre imagens, visagens e memórias quero o desligamento, a plenitude sem fantasias e sem promessas. Principalmente sem as promessas vazias, que reconheço no mantra:

Tudo que alcanço tem um toque de mentira, outro de verdade;
uma dose de franqueza, outra de falsidade;
uma parte de loucura, outra de sanidade.

1 a ave 1

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